A devolução do manto Tupinambá às terras brasileiras, após passar quatro séculos no Museu Nacional da Dinamarca, gerou comoção nas comunidades indígenas e muita curiosidade na sociedade. Feita com penas de pássaro-guará e fios de algodão, a peça foi confeccionada entre os séculos XVI e XVII no Brasil e depois levada pelos colonizadores.
Para o Correspondência, especialistas comentam a importância cultural, política e social da peça. Na tradição indígena, o manto Tupinambá é uma forma de demonstrar autoridade política. Pode ser utilizado em cerimônias especiais e também em rituais espirituais. Seu uso só é permitido por membros de alto escalão da comunidade indígena, como xamãs e caciques. “Nunca falam da história do povo originário, os Tupinambás. Quando nós, povos indígenas, procuramos as nossas histórias, vasculhamos os nossos baús de tesouro, encontramos a maior parte do nosso património cultural em solo europeu. É a primeira vez na história que os povos indígenas têm acesso aos seus antepassados e podem contar, através da escuta sensível, sobre o seu povo e falar sobre o seu território de origem”, declara a liderança indígena Glicéria Tupinambá, da Terra Indígena de Olivença, na Bahia.
Glicéria, que é antropóloga, explica que seu povo foi um dos primeiros a ser colonizado, pois fica na faixa costeira do país, por onde chegavam os barcos. Segundo ela, os colonizadores retiraram as capas dos indígenas como forma de mostrar que estavam “catequizados”.
Segundo o historiador Crenivaldo Veloso, que também trabalha no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, para onde foi levado o manto, o artigo indígena relembra tempos em que o Brasil era predominantemente indígena. “Esse manto Tupinambá é um exemplo de um Brasil que é território indígena e que a sociedade brasileira contemporânea precisa reconhecer. Representa uma antiguidade, protagonista e presença ativa na construção da história do país. É também uma prática de releitura e crítica das experiências coloniais porque a forma como estes seres sagrados foram parar aos museus tem sido alvo de críticas e de revisão histórica. Simboliza uma vitória do movimento indígena brasileiro”, avalia.
O retorno da peça ao Brasil teve uma longa trajetória. A antropóloga explica que, desde 2000, a história dos mantos foi revivida, mas não se sabia onde estavam. Estudando a própria cultura com os antepassados, em 2007, a indígena confeccionou um manto baseado no que foi descrito pela tribo. Mas ela conta que só em 2018 conheceu, pessoalmente, pela primeira vez, um manto Tupinambá extraído do Brasil. Ele estava na França e foi como um “sinal”, segundo ela, para procurar mais peças como essa pelo mundo.
Ao realizar pesquisas para o mestrado em mantos, Glicéria começou a procurar a peça em outros países e localizou algumas na Itália, Suíça, Bélgica e Dinamarca. Neste último país, ela diz que o manto “falou” com ela e “disse” que estava “pronto” para ser “levado para casa”. Assim, junto com uma carta que o povo Tupinambá já havia enviado na década de 2000, o Museu Nacional Brasileiro solicitou a peça. Desde junho do ano passado começou o processo de envio do manto indígena.
Ancestralidade
Para os Tupinambás, os mantos são como entidades ancestrais, que carregam a memória das histórias que viveram e também podem ser masculinos ou femininos. O manto enviado pela Dinamarca, segundo Glicéria, é feminino. Foi confeccionado e utilizado pelas mulheres Tupinambá e há evidências de seu uso em pinturas e registros históricos da época colonial. “É incrível, fantástico. Só para nós, que pertencemos ao povo, que temos cultura para entender. Saímos do nosso território e chegamos diante de um ancestral que te reconhece como parente de sangue, que tem memória de tantos anos. Tem mantos que têm 400, 600 anos, são muito antigos e guardam fragmentos de memória. Para mim isso é incrível”, diz emocionada a indígena.
Glicéria afirma que não há intenção de trazer outro manto para o Brasil agora. Segundo ela, é preciso tempo para que o manto Tupinambá seja recebido, passe pelos ritos indígenas e também comece a ser conhecido pela sociedade no Museu Nacional. Agora é a hora de valorizar as conquistas dos povos indígenas. Veloso vê a retomada do manto indígena como um momento simbólico.
“O manto é um marco ancestral. É como uma oposição ao marco temporal”, declara, referindo-se às recentes discussões no Congresso Nacional e no Supremo Tribunal Federal sobre a tese que afirma que apenas áreas indígenas são aquelas que já haviam sido demarcadas em 1988. O historiador acredita que cultura indígena é “algo em movimento”, como mostra o ressurgimento de um manto até então desconhecido.
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