O Calaf Brasília está fechando as portas, desta vez, em definitivo. Após um fechamento que durou quatro meses em 2022, um dos principais redutos culturais da cidade se despede esta noite do público brasiliense. A partir das 20h, o local recebe os calafeiros de plantão para uma última dança — o tradicional samba 7naRoda, responsável por animar as terças-feiras do espaço há 17 anos.
Inaugurada em 1990, a casa leva o nome do proprietário Venceslau Calaf, gaúcho, mas morador da capital desde 1962. Com experiência na área gastronômica — a família de Venceslau era responsável por um restaurante na 105 Sul —, o gaúcho decidiu para criar a fasquia, sem sequer imaginar o futuro promissor. A virada do lugar aconteceu na década de 2000, quando o bar passou a receber feijoadas com música nos finais de semana.
Desde então, foram milhares de festas, trilhas sonoras e gerações que ficaram marcadas pelo conhecido espaço do Setor Bancário Sul. Tal sucesso, porém, foi interrompido pela chegada da pandemia da Covid-19, mudando o rumo de uma história de 34 anos que ficou para sempre registrada no cenário cultural da cidade. Durante o bloqueio, o espaço teve que permanecer fechado, seguindo as determinações da Organização Mundial da Saúde (OMS), e só reabriu após autorização das autoridades.
O impacto da pandemia, porém, foi muito forte. Em março de 2022, Calaf anunciou o encerramento das atividades, devido a problemas financeiros causados pelo período. A população de Brasília recebeu a notícia com comoção, cumprindo o longo calendário de despedida, com casa lotada. Os meses de portas fechadas acabaram sendo um alívio financeiro para a família proprietária, que conseguiu quitar dívidas e organizar os débitos do espaço.
Resolvidos os problemas mais urgentes, o apoio dos clientes fiéis e o avanço da vacinação e controle dos casos de Covid-19, foi anunciada a volta do Calaf. As expectativas eram otimistas, porém, exatamente dois anos após o retorno, a casa foi obrigada a fechar as portas, agora em definitivo. “Quando as atividades culturais e de convívio voltaram a ser permitidas, decidimos reabrir e tentar recuperar. Porém, tivemos muitos gastos durante o período de isolamento social, pois mantivemos nossos funcionários durante todo esse tempo”, explica a família Calaf.
“Sempre concordamos com a necessidade de medidas de isolamento social e buscamos minimizar ao máximo o impacto em nossa equipe. Com isso tivemos muitos gastos e infelizmente não conseguimos nos recuperar, mesmo com a retomada das atividades. A forma como atuamos, com a maioria da equipe formada por funcionários CLT de longa data, não nos permitiu competir no cenário cultural atual”, acrescenta.
Porém, Venceslau e as filhas, também responsáveis pelo local, Priscila, Paula e Luiza, garantem que os últimos 24 meses renderam bons resultados para Calaf. “Tivemos novos encontros de rodas de samba, como Samba União, Samba da Passarinha, Samba Pinçado, Cumieira, entre outros. Mantivemos também festas tradicionais, como terça-feira no 7naRoda, nossa parceira desde o início do Calaf, Emopalooza e outras. Aliás, somos muito gratos a tudo que a cultura do DF e nossos parceiros de trabalho nos permitiram vivenciar”, destacam.
Legado
Passado de pais para filhos, o legado de Calaf continuará vivo nas memórias de quem por lá passou. “Minha mãe conhecia Calaf, meu pai sempre ia lá, então foi engraçado começar a frequentar um espaço de festas que meus pais, já adultos, também frequentavam”, conta o engenheiro ambiental Leon Mortari, 25 anos. Ele lembra que, na primeira ida ao bar, o DJ da época era colega de trabalho de sua mãe.
Para Leon, mais que uma casa de festas, o spot fez parte da descoberta de sua sexualidade. “Calaf foi um espaço de diversidade para mim. Me assumi gay no 3º ano do ensino médio, aos 17 anos, e foi esse espaço que me fez ver que havia outras pessoas que também eram gays, da comunidade LGBT, apoiadores”, lembra.
Foi lá, por exemplo, que o engenheiro conheceu o primeiro namorado. “Minha relação com Calaf foi muito curiosa. Durante os seis anos que frequentei esse espaço, não era a única casa de festas que existia em Brasília, mas não fiz questão de procurar outras coisas, porque já me serviu muito bem”, ressalta. “Não foi só uma montanha russa, teve um viés político envolvido, uma discussão feminista, LGBT, e foi muito legal estar no olho dessa tempestade, porque vimos muita gente crescendo e produzindo coisas maravilhosas aí”, detalha.
Desde o encerramento temporário das atividades, em 2022, Leon se aventurou em outras casas de festas de Brasília, sem conseguir replicar a sensação trazida pelo espaço do Setor Bancário. “Vou a outras festas, mas nada se compara ao Calaf. Foi uma proposta bem diferente, plural e diversa, que não vejo em outros lugares que frequento. Acho realmente que o Calaf, para a minha geração, foi algo muito especial, que talvez não volte a ser visto aqui em Brasília”, avalia.
“Estou triste com o fechamento, mas muito honrado por ter participado de todo esse movimento e poder vivenciar o que Calaf proporcionou. É uma pena para quem não teve essa experiência e para as gerações que não conhecerão o poder que Calaf tem”, acrescenta.
Assim como as histórias de crianças influenciadas pelos pais, também existem histórias de pais influenciados pelos filhos. É o caso de Cecília Soares, de 60 anos. “Fui muitas vezes com meus filhos e amigos ver o 7naRoda. Nesse samba me senti livre, feliz e trouxe de volta o carioca, mesmo estando muitos anos longe do Rio.” A servidora aposentada foi para Calaf a convite dos filhos André Soares, 30, e Bruno Soares, 25. “Lembro de ser convencida pelos meninos a ir para Calaf nos dias em que estava chateada. Serviu de “remédio”, principalmente por estar com eles”, relata.
“Em 2022, fui me despedir do Calaf, sem acreditar que um lugar tão especial iria fechar. Agora, parece que chegou a hora da verdade. É triste imaginar que não farei mais parte desse círculo de alegria e não poderei me despedir pessoalmente. Mas, guardo com carinho as lembranças, as histórias e o sentimento de ‘liberdade, liberdade, abra suas asas sobre nós’”, diz em referência ao samba-enredo da Imperatriz Leopoldinense de 1989.
Tradição de quase duas décadas, o 7naRoda já fazia história no bar nos anos 2000. “Calaf fez parte da minha vida há mais de 15 anos”, diz Juliana Vasconcellos, 49. O espaço foi garantia nos planos semanais da advogada por mais de 10 anos —ela foi figura cativa nas tradicionais terças-feiras com o 7naRoda, no Apresentações do Coisa Nossa às sextas-feiras e nas rodas de samba aos sábados, que começavam às 14h e se prolongavam pela madrugada.
“Em 2007, fiz um mega aniversário lá, no dia 7 de julho. Fui coroada rainha de Calaf pelos meus amigos, ganhei um troféu no palco, sendo aplaudida pelo público gritando: ‘Ela merece, ela merece’”, ri. Lá, Juliana conheceu pessoas que marcaram sua vida para sempre. “Em 2008, conheci o pai do meu filho na terça de samba do 7narRoda e, em 2015, conheci o amor da minha vida, numa terça de carnaval com o 7narRoda também. Ainda hoje estamos juntos”, enumera.
“É um lugar importante para mim, onde tive muita alegria, muita confraternização com amigos, e vivi muito samba e muita dança. Era o meu lugar favorito para ir naquela época da minha vida”, lembra ela.
Trilha sonora que ficou marcada na história do bar, o 7naRoda é o responsável pelo samba final do espaço. “É uma grande honra fechar o Calaf, por tudo que ele representa no cenário cultural de Brasília e pelo que o grupo vem construindo ao longo de todos esses anos junto com esta casa tão representativa”, afirma o integrante Guto Martins. “Fechamos com chave de ouro esse ciclo rico e diversificado, que se confunde com a história do Distrito Federal”, comemora.
Para se despedir, Venceslau, Priscila, Paula e Luiza deixam um último convite. “Calaf morre agora, mas vive um pouco em cada lembrança de um bom samba, de um bom beijo, de uma cachaça caseira com os amigos, de uma feijoada feita na hora. Venha comemorar conosco nesta terça-feira, uma última e última vez. Quem viveu Calaf sabe o legado que deixamos”, chamam. Esta noite, o 7naRoda representa o público brasiliense com a mensagem final: Obrigado, Calaf!
Serviço
7naRoda apresenta A Melhor Terça do Mundo: Valeu, Calaf!
Hoje, a partir das 20h, no Calaf Brasília
Ingressos pela plataforma Sympla, a partir de R$ 25
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