Considerada uma das melhores do mundo no combate à violência contra a mulher, a Lei Maria da Penha atinge a maioridade, neste dia 7 de agosto, com melhorias ao longo dos anos. Porém, apesar das normas estabelecerem medidas que salvam vidas, especialistas acreditam que ainda é necessário investir em políticas públicas e na prevenção.
Sancionada em 7 de agosto de 2006, a Lei nº 11.340 homenageia Maria da Penha Maia Fernandes, vítima de violência durante 23 anos de casamento. Nesse período, ela sofreu duas tentativas de homicídio. A primeira com arma de fogo a deixou paraplégica. A segunda, por eletrocussão e afogamento, fez com que ela encontrasse coragem para denunciar o ex-marido. Ela obteve uma ordem judicial contra ele e iniciou uma batalha para que seu agressor fosse condenado.
A demora resultou na condenação do Brasil pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, da Organização dos Estados Americanos (OEA). A condenação deu origem à lei considerada, pela Organização das Nações Unidas (ONU), como uma das três melhores do mundo no combate à violência contra a mulher.
Antes dessa lei não havia proteção às vítimas de agressões, lembra a vice-presidente da Comissão de Combate à Violência contra a Mulher da Ordem dos Advogados do Brasil, Seção Mineira (OAB-MG), Ariane Martins Moreira. “Até então não havia delegacia especializada, nem rede, nem especificações dos tipos de violência. Isso foi estabelecido com a Lei Maria da Penha”, afirma. Segundo a advogada, a legislação olha para as mulheres vítimas de violência, que muitas vezes sofrem no anonimato. “A mulher não tinha voz, não foi ouvida, foi julgada.”
Ainda segundo Ariane, o dispositivo legal estabeleceu reduções para o artigo 129 do Código Penal, que trata de lesões corporais. Em 2018, o descumprimento de medida protetiva passou a ser crime. Em 2023, a lei ganhou mais uma inovação. A mulher não precisa mais registrar boletim de ocorrência para solicitar a medida protetiva.
“Foi um grande avanço. Muitas vezes, as mulheres deixam de solicitar proteção por causa do boletim de ocorrência. Às vezes ele é o pai dos filhos dela, ela até tem um bom relacionamento com a família dele. Até a família dela está contra ela porque quando você faz um boletim de ocorrência, é para o resto da vida. Ela também deixou de fazer isso por causa dos filhos, com medo de que ele (o agressor) não conseguisse mais emprego, já que muitas vezes ela depende da pensão”, explica a advogada. Com essa mudança, a mulher pode solicitar diretamente ao juiz a medida protetiva.
Proteção de rede
Outro mecanismo previsto na lei é a rede de proteção às vítimas de violência doméstica. Diversos órgãos atuam em conjunto, como a OAB, o Ministério Público, a Delegacia da Mulher, prefeituras municipais e a Polícia Militar. “É muito importante para o trabalho de prevenção. Ele salva vidas.” Além disso, estes organismos trabalham para aumentar a consciencialização sobre os direitos que protegem estas vítimas.
“Tentamos ir para o campo, conversar, conversar com essas mulheres. É o lugar mais difícil de chegar. Sabemos que, para essas mulheres do meio rural, muitas vezes é comum sofrer violência. Veja o pai e a mãe. Eles não têm conhecimento de delegacia especializada. A violência se naturaliza”, lembra Ariane.
A criação de delegacias especializadas está entre as medidas implementadas pela lei. “É um atendimento mais acolhedor e humanizado às mulheres vítimas de violência.” Porém, nem todas as cidades possuem essas delegacias.
Outras mudanças dão mais poder à palavra da vítima. “Antigamente, o juiz tinha que justificar porque aceitava um pedido de medida protetiva. Hoje, basta que a vítima esteja em risco iminente para que o pedido seja atendido. Em caso de indeferimento, o juiz também precisa justificar a decisão”, explica o advogado.
Aumento de relatórios
Apesar de toda a proteção, a vice-presidente da Comissão de Combate à Violência Contra a Mulher da OAB-MG lembra que o Brasil ocupa o quinto lugar em casos de violência doméstica no mundo. “As reclamações aumentaram. Estas mulheres estão a tornar-se mais conscientes dos seus direitos e têm procurado mais justiça. Denunciar mais e acreditar que a lei os protege.”
O advogado reforça que as medidas de proteção são o meio mais eficaz de proteger as vítimas. “Com ele conseguimos salvar vidas. Está comprovado que, na maioria dos casos de feminicídios, as mulheres não solicitaram medidas protetivas. É um dos mecanismos que a lei prevê que é eficiente.”
Segundo o Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG), de janeiro de 2006 a junho de 2024, foram decretadas 671.174 medidas protetivas de urgência no estado. Em 2023, eram 61.750 e até junho deste ano 32.217. Em BH, segundo a Polícia Civil, são emitidas 40 medidas protetivas por dia.
Demandas em Minas
O aumento de reclamações, segundo ela, está ligado ao maior conhecimento dos direitos. “Estamos mudando aos poucos essa cultura de machismo em nosso país. As mulheres ganharam mais coragem para escapar desse ciclo de violência”, analisa.
Apesar disso, na opinião de Ariane, são necessárias mais políticas públicas para as mulheres. “Que denunciem, é registrado boletim de ocorrência para melhorar a prestação de serviços. A legislação é uma das melhores do mundo, mas temos muito a melhorar na prestação de serviços. Quanto mais mulheres denunciam, mais exigimos políticas públicas.”
“Existe uma lei que determina que todas as delegacias da mulher devem ter regime de plantão, mas sabemos que em Minas isso não aconteceu. O Estado ainda precisa disponibilizar servidor e espaço para a delegacia funcionar 24 horas por dia. O número de servidores também é insuficiente. Delegacias especializadas, de plantão, atualmente só existem em Belo Horizonte. Os serviços precisam funcionar conforme exigido por lei”, finaliza.
Prevenção
Apesar dos avanços que a Lei Maria da Penha sofreu ao longo desses 18 anos, o momento também deve ser focado na prevenção, segundo a delegada da Divisão Especializada em Atendimento à Mulher, ao Idoso e à Pessoa com Deficiência (DEMID), Danubia Helena Pinturas de Soares.
“Conscientizar essa mulher onde procurar ajuda, que ela não deve esperar a violência física acontecer, existe violência moral, psicológica, patrimonial e sexual. Existe uma rede de enfrentamento. Apoio psicológico. Todas as iniciativas fazem parte da prevenção. A partir do momento que você já estiver em um ciclo de violência saiba onde procurar ajuda para evitar o agravamento, pois sabemos que a violência doméstica é gradativa”, destaca.
Segundo o delegado, é perceptível o aumento das reclamações, embora haja subnotificação. “Muito pelo trabalho de conscientização, que tem incentivado as mulheres a denunciarem.” Ela reforça que a medida protetiva salva vidas. “A lei está muito avançada, é muito eficaz, mas tem que ser cada vez mais aplicada. A maioria das mulheres que morrem por feminicídio não possui medidas de proteção. É um mecanismo muito importante e as mulheres em situação de violência têm que ir até a delegacia e pedir.”
A Lei Maria da Penha atinge a maioridade, protegendo as mulheres contra a violência e inspirando vítimas que transformam a dor em irmandade. É o caso de Daniele da Silva, 42 anos. Ela enfrenta violência doméstica há 15 anos, diz que a medida protetiva salvou sua vida e há dois anos decidiu criar um projeto que ajude mulheres que passam pelo mesmo drama que ela viveu.
“Antes de conhecer a Defensoria Pública e o Nudem (Defensoria Especializada na Defesa dos Direitos das Mulheres em Situação de Violência Doméstica), não tive coragem de denunciar. Tive medo de retaliação do agressor, de não ter o apoio da segurança pública”, afirma.
Daniele fez a primeira reclamação aos 30 anos. Ela estava casada há 12 anos quando sofreu a primeira violência por parte do ex-marido. “Tudo começou psicologicamente. Ele me ameaçou, dizendo que se eu denunciasse passaria fome e moraria na rua. Até que realmente aconteça um golpe.
As agressões físicas começaram quando Daniele estava grávida e continuaram até que ela teve coragem de denunciar. “Naquela época eu não conhecia o Nudem. Eu fiz a reclamação. Nesta primeira medida, a restrição foi para a distância de 500 metros. Mas as ameaças continuaram. Ele nunca respeitou o distanciamento, queria se aproximar das crianças. E ele me ameaçou por telefone, pelas redes sociais”, lembra.
A medida protetiva durou cerca de 10 anos. “Ele acabou se afastando dos filhos. Ele não os vê há 10 anos. Como ele saiu e não quis mais ver as crianças, nunca mais procurei ele, a medida meio que expirou.”
O pesadelo, porém, não acabou. “Tive problemas familiares. A Lei Maria da Penha não é feita apenas para os cônjuges, ela se estende também aos familiares”, explica. Ela conta que teve que solicitar outra medida protetiva, desta vez contra um sobrinho, após ele tentar matá-la há quatro meses. “Moramos em um prédio só com familiares. Então, há muitas brigas e discussões. Depois que meus pais faleceram, essas discussões se intensificaram.”
“Se não fosse (medida protetiva), eu nem estaria aqui hoje. Às vezes, vamos à delegacia. Eles vão investigar, mas quando investigarem, a pessoa já matou você. Na Defensoria Pública e no Nudem as coisas são mais ágeis. Já dão uma medida protetiva imediatamente. No meu caso, eles nem quiseram ver o vídeo (do ataque do sobrinho). Simplesmente emitiram a medida protetiva e ordenaram a remoção. Agora estão investigando”, acrescenta.
Ela também destaca a importância de as mulheres denunciarem e não terem medo. “A lei nos protege e permanece ao nosso lado 24 horas por dia. Se acontecer alguma coisa comigo eu entro em contato com o Nudem, nem preciso mais da delegacia. Eles imediatamente entram em contato com a polícia”, explica ela.
Orientação
Apesar de toda a dor, Daniele decidiu há dois anos criar um projeto para ajudar mulheres que sofrem dos mesmos problemas que ela. O Instituto Cultural Corpo em Movimento está localizado no Barreiro, região de mesmo nome em Belo Horizonte. “Como fiz o curso de defensora popular, procuro ajudar essas famílias, essas mães, pessoas que sofrem violência, mostrando a forma mais fácil de denunciar.” Hoje são 35 mulheres atendidas. “Conto o que passei para que vejam que consegui superar. Apesar de ainda sofrer, consegui denunciar. As pessoas começam a ouvir a sua história, percebem que também sofrem e começam a falar.”
O objetivo do projeto é orientar essas mulheres para que entendam que a violência, seja ela qual for, deve ser denunciada. As vítimas também recebem apoio psicológico. Daniele diz que o projeto é a realização de um sonho. “Para ajudar outras mulheres. Às vezes estou vivendo isso e tem gente próxima que também está vivendo e não tem coragem de denunciar. Eles vêm aqui, conversam, falam sobre o que está acontecendo. Quando vemos que não temos condições de atender, o caso é repassado aos órgãos competentes.”
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