O professor Raphael Vasconcelos, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), lembra detalhadamente quando teve que correr para o bunker no Conselho Nacional Eleitoral de Venezuela (CNE), em Caracas, logo após as eleições que levaram mais de 12 milhões de venezuelanos às urnas em 28 de julho.
O órgão eleitoral do país acabava de declarar Nicolás Maduro presidente reeleito, e lá fora, opositores que contestaram o resultado protestaram.
“Ouvi as explosões, enquanto os observadores eleitorais se abrigavam”, recorda.
A partir daí, Vasconcelos só teria tempo de ir ao hotel, pegar as malas, seguir para o aeroporto de Maiquetía, na região metropolitana de Caracas, e retornar ao Brasil, antes que a situação saísse do controle.
Desde o anúncio da reeleição de Maduro, a Organização das Nações Unidas (ONU) estima que 2.400 pessoas foram detidas pelo regime venezuelano. O procurador-geral da Venezuela, Tarek William Saab, confirmou que pelo menos 25 pessoas morreram nos protestos que se seguiram ao dia das eleições.
Pesquisador de sistemas eleitorais na América Latina e ex-secretário do Tribunal Permanente de Revisão do MercosulHá muito que Vasconcelos reconhecia o sistema eleitoral venezuelano como o melhor da região. “Eu defendi isso com unhas e dentes.”
“Porque, além da urna eletrônica, que imprime uma cédula ao final do processo, eles também têm o voto físico colocado em outra urna. Essa urna física está aberta em 53% das escolas e você pode comparar com o voto eletrônico”, explica o professor, que esteve no país em outras eleições.
Até a própria oposição acreditava no sistema de votaçãoapesar das suspeitas sobre o que acontece antes e depois das eleições.
O professor da Uerj conseguiu ir a Caracas a convite da CNE e diz ter sido o único brasileiro num grupo de cerca de 50 pessoas que acompanhou de perto a votação, entre outros convidados de países latinos, africanos e até da Bielorrússia.
Mas Vasconcelos diz agora ter um “sentimento de desolação” porque o órgão eleitoral venezuelano ainda não apresentou dados detalhados da votação.
Até agora, a CNE apenas apontou A vitória de Maduromas sem disponibilizar dados detalhados dos boletins de voto – algo que o Tribunal Superior Eleitoral (TSE) faz no Brasil, por exemplo.
O órgão eleitoral do país, controlado por um aliado de Maduro, aponta a vitória do presidente com cerca de 52% dos votos, contra 43% do principal candidato da oposição, Edmundo González Urrutia.
Na tarde de terça-feira (13/8), duas semanas após a eleição, o site da CNE ainda estava offline. Pouco depois de anunciar os resultados, a agência disse que estava investigando um “ataque hacker”, que teria impedido a divulgação dos dados.
Por outro lado, a oposição liderada por Maria Corina Machado diz que coletou cédulas em mais de 70% dos locais de votação. Em um site, a campanha publicou fotos dos boletins por conta própria e fez uma investigação paralela, apontando Edmundo González como vencedorcom mais de 67% dos votos.
O professor Raphael Vasconcelos elaborou um relatório logo após as eleições, em nome do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Internacional (Nepedi) da Uerj, no qual já pedia a divulgação de dados detalhados pela mesa eleitoral, para que dúvidas fossem sanadas. resolvido.
“Estou muito incomodado com a CNE, com a forma pouco transparente e com a não divulgação de dados muito claros, que permitiriam a comparação [entre os dados oficiais e o da oposição]. Isso coloca em dúvida a democracia venezuelana”, avalia.
“Mas também não posso garantir que os boletins divulgados pela oposição sejam verdadeiros”, afirma o professor.
Algumas análises, porém, já apoiaram os resultados da oposição. Pouco depois do anúncio da CNE, o New York Times publicou uma avaliação baseada em dados divulgados pelo grupo de investigadores do projecto Alta Vistaque inclui o especialista brasileiro Dalson Figueiredo, da Universidade Federal de Pernambuco.
“Vários analistas eleitorais e de sondagens independentes analisaram a abordagem dos investigadores e disseram que, com base nos números partilhados, as estimativas pareciam credíveis”. escreveu o jornalque destacou que o grupo estaria associado à oposição.
A Alta Vista criou uma amostra aleatória de mais de 1.000 máquinas de votação em todo o país e projetou a amostra para representar proporcionalmente a geografia e o partidarismo do país.
O New York Times, no entanto, disse que não poderia “verificar os números de forma independente”. Maduro, por sua vez, também tem insistido que os dados dos boletins divulgados pela oposição são falsos.
Mas, com base nestes resultados, países como os EUA e a Argentina reconheceram González como o vencedor das eleições.
Governos de países como Brasil e Colômbia, por sua vez, insistiram que a CNE apresente dados detalhados, antes de reconhecer a reclamação.
Onde estão os dados?
O pesquisador Raphael Vasconcelos detalha que o que precisa ser divulgado pela CNE venezuelana são dados “desagregados” e “detalhados”, nos quais os resultados possam ser conferidos em cada local de votação.
“Os países com votos em papel precisam de atas de contagem manual. Você insere os votos em um registro em papel e essas atas são levadas ao órgão eleitoral. É com base nessas atas que você faz a contagem.”
“No Brasil e na Venezuela você não tem ata, o voto é transmitido eletronicamente para o centro de apuração. O que temos é a urna, que é o extrato que sai no final da votação e que você imprime”, ele explica.
Tendo em mãos os resultados dos escrutínios por local de votação, a população poderia verificar se correspondem ao resultado publicado pela CNE.
“Se não funcionar, vai a tribunal. Mas a oposição da Venezuela baseia-se na suposição de que a Justiça é dominada pelo chavismo e não discuto com eles”, afirma Vasconcelos.
Maduro disse que entregou os boletins ao Supremo Tribunal de Justiça (TSJ), que seria responsável por certificar sua reeleição. O presidente descreveu as alegações da oposição como uma “tentativa de golpe de Estado” e pediu ao TSJ que respondesse a este “ataque ao processo eleitoral”.
Mas existem dúvidas sobre a imparcialidade do TSJ. Todos os seus membros foram nomeados por parlamentos dominados pelo chavismo, e alguns deles têm uma história com o partido de Maduro.
Observação x monitoramento eleitoral
No documento divulgado pela Nepedi da Uerj logo após o resultado eleitoral, o professor Raphael Vasconcelos, oficialmente credenciado pelo CNE, parecia muito incomodado com as declarações e relatórios rapidamente divulgados por outros observadores, com questionamentos sobre o próprio pleito.
No dia 30 de julho, por exemplo, o Centro Carteruma renomada organização que participou das eleições venezuelanas como observadora, emitiu um comunicado dizendo que a eleição “não pode ser considerada democrática”.
Para Vasconcelos, as avaliações eleitorais devem centrar-se na eleição em si, e não no processo anterior ou posterior. Isto é o que se chama de “observação eleitoral”.
O Departamento de Assuntos Políticos e de Consolidação da Paz das Nações Unidas (DPPA) definir que a observação eleitoral é a “recolha sistemática de informação e avaliação de um processo eleitoral”.
O TSE, no Brasil, fala em “procedimento sistemático de acompanhamento e avaliação da reclamação”.
Ou seja, as missões teriam o papel de avaliar objetivamente os fatos nos dias de votação – além dos dias imediatamente anteriores e posteriores.
Segundo o professor brasileiro, tudo correu bem em Caracas no dia das eleições, 28 de julho, com as pessoas demonstrando apoio aos candidatos que queriam, inclusive na presença de seguranças.
“É totalmente inapropriado, logo após uma eleição eleitoral, vocês divulgarem comunicações que tratam de questões pré-eleitorais, sobre recenseamento eleitoral, desafios de candidatura. já está queimando”, avalia.
Para Vasconcelos, os órgãos que deveriam apenas fazer “observação eleitoral” acabaram por entrar no campo do “acompanhamento eleitoral”, que seria algo mais complexo e de longo prazo.
Antes das eleições, o processo eleitoral venezuelano já era questionado. Duas possíveis candidatas da oposição, María Corina Machado e, posteriormente, Corina Yoris, tiveram a candidatura bloqueada. Edmundo González, que acabou sendo o candidato, disse em entrevistas que o “As eleições na Venezuela não são justas nem limpas”.
Havia também a expectativa de que o processo eleitoral da Venezuela fosse observado por mais atores.
Dois meses antes, o governo Maduro cancelou o convite para que os observadores da União Europeia monitorizassem as eleições.
O TSE brasileiro também decidiu de última hora enviar observadores para monitorar a eleição, depois de Maduro fazer ataques contra o sistema eleitoral brasileiro.
Diante da espera pelos dados da CNE, o professor que esteve em Caracas avalia que a decisão de “neutralidade” do Brasil ainda é a mais adequada no momento.
“É a posição de um líder regional. O Itamaraty sempre teve essa postura, de política de estado independente do governo”, afirma o ex-membro do Tribunal do Mercosul.
Mas Vasconcelos reconhece que a situação se está a tornar “insustentável”, “manchando todo o processo eleitoral venezuelano”.
“Olhei para o processo eleitoral e disse que poderia acusar a Venezuela de tudo no seu processo pré-eleitoral, que é o que chamo de monitoramento, mas na hora da votação foi impecável.
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