Qual é a relação entre o envelhecimento da população e as alterações climáticas, os dois fenómenos humanos e ambientais mais impactantes do século XXI até agora?
Nos últimos dias, grande parte do Brasil sofreu com um resfriado agudoe as mortes de moradores de rua devido à hipotermia causam indignação e inquietação. Sempre que ocorrem essas ondas de frio intenso, é comum ouvir manifestações de pessoas que não acreditam na aquecimento global. É fácil encontrar alguém perguntando: “Eles não falam isso o planeta está esquentando? Onde?”.
A onda de frio, no final de agosto, chegou no mesmo momento em que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgava dados sobre o envelhecimento da população com base nas projeções do Censo 2022.
A população brasileira está envelhecendo porque a taxa de fertilidade atingiu um nível europeu, ou seja, 1,5 filho por mulher (contra 6,3 na década de 1960 e 2,32 no ano 2000). E a esperança média de vida cresceu para 76,4 anos (em comparação com 71,1 em 2000).
Como a demografia está longe de se constituir como determinismo e embora o avanço da Medicina seja infinito e possa proporcionar uma vida cada vez mais longa, permanece sempre a questão sobre o que pode ameaçar a longevidade humana.
Poderá esta longevidade ser promissora face às alterações climáticas? Afinal, o risco maior de morte é por frio extremo e suas consequências, ou por calor exacerbado?
Efeitos diretos do calor na longevidade
Um estudo de modelagem realizado pela equipa de investigadores do Centro de Investigação da Comissão Europeia, liderado por David García-Léon, e publicado recentemente na revista Saúde Pública da Lancetanalisou as consequências das alterações climáticas para a longevidade em 1.368 regiões em 30 países europeus. Foram observadas características epidemiológicas e socioeconômicas.
A investigação utilizou dados de 854 cidades europeias e é a primeira a estimar as mortes atuais e futuras devido a altas e baixas temperaturas neste nível de detalhe regional para todo o continente.
As mortes causadas pelo calor poderão triplicar na Europa até 2100, concluem os autores.
O trabalho sugere que as disparidades regionais existentes no risco de morte por altas e baixas temperaturas entre adultos aumentarão no futuro devido às alterações climáticas e ao envelhecimento da população.
As mortes causadas pelo calor aumentarão em todas as partes da Europa, mais significativamente nas regiões do sul. As áreas mais afetadas incluirão Espanha, Itália, Grécia e partes de França.
Globalmente, com um aquecimento global de 3°C – uma estimativa superior baseada nas actuais políticas climáticas – o número de mortes relacionadas com o calor na Europa poderá aumentar de 43.729 para 128.809 até ao final do século.
No mesmo cenário, as mortes atribuídas ao frio – atualmente muito superiores às do calor – permaneceriam elevadas, com uma ligeira diminuição de 363.809 para 333.703 em 2100.
Foram produzidas estimativas de mortes atuais e futuras relacionadas com a temperatura para quatro níveis de aquecimento global (1,5°C, 2°C, 3°C e 4°C) utilizando uma combinação de 11 modelos climáticos diferentes.
No calor ou no frio, os mais pobres e os idosos são mais afetados
Segundo o estudo, atualmente morrem cerca de oito vezes mais pessoas de frio na Europa do que de calor, mas a previsão é que esta proporção diminua significativamente até ao final do século.
Os autores dizem que as descobertas podem orientar o desenvolvimento de políticas para proteger as áreas e as pessoas mais vulneráveis dos efeitos das temperaturas quentes e frias.
Como sabemos, os efeitos climáticos extremos afectaram principalmente os mais pobres e, em termos de idade, os mais velhos.
A maioria das mortes por calor ou frio intenso, segundo a pesquisa, ocorrerá entre pessoas com mais de 85 anos.
As pessoas mais velhas (com 80 anos ou mais), especialmente aquelas com dificuldades de mobilidade ou pessoas financeiramente vulneráveis, têm maior dificuldade em procurar proteção ou escapar de inundações, furacões, frio ou calor.
A questão da análise por idade, porém, é uma das limitações da pesquisa apontada pelos autores porque foi impossível analisar os bebês – bem como estabelecer gênero e grupos étnicos. Outra limitação é que o estudo foi realizado apenas em áreas urbanas, onde há maior estresse térmico.
Mesmo assim, o trabalho, pela sua abrangência, oferece evidências poderosas para outros países, talvez para todo o planeta. Estudos que buscam a intersecção entre o envelhecimento populacional e as mudanças climáticas têm constituído um campo de estudo frutífero.
No Brasil, por ser um país continental, esta linha de pesquisa é urgente. No meu livro Viva muito (ed. Leya, 2010), alertei sobre o risco de se repetirem no Brasil as consequências dos “canículos” franceses de 2003, quando idosos foram encontrados mortos, já em estado de decomposição, sozinhos em suas casas por falta de de um serviço de saúde. cuidados domiciliares.
Impactos de condições climáticas extremas no Brasil
O Brasil tem um agravante para as ondas de frio ou calor: o grande número de casas autoconstruídas ou mesmo a falta de adaptação das residências aos extremos climáticos.
Pesquisas mostram que 85% da população brasileira que construiu ou reforma o fez por conta própria, sem apoio de arquitetos ou engenheiros. Salvar vidas de picos de calor e frio dependerá de muito mais do que simples ventiladores ou cobertores cobrados a crédito. As favelas são ricas em materiais inadequados, como telhas de zinco, que aquecem ainda mais o espaço interior.
Há mais de uma década, pesquisadores do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) alertaram sobre as consequências da transição demográfica e da transição climática.
José Féres argumentou, em capítulo de livro publicado em 2014, que na discussão sobre a degradação climática, o tamanho da população pesa menos que a estrutura etária, a composição familiar e seus arranjos e o processo de urbanização, pois esses componentes afetam o padrão de consumo (especialmente energia) e condições para prevenir eventos extremos.
Sobre as mudanças no padrão de consumo de uma população superidosa e seus efeitos no meio ambiente, no mesmo livro Camilo de Moraes Bassi, também do Ipea, analisa o efeito das mudanças na estrutura etária brasileira na capacidade de sustentabilidade com base na pegada ecológica metodologias e pegada hídrica.
Bassi concluiu que o envelhecimento populacional pode significar “poupança ecológica” devido ao padrão de consumo alimentar dos idosos ser menos intensivo em bens naturais (terra e água).
Como podemos constatar, o envelhecimento populacional é também fonte de geração de oportunidades e riqueza. Porém, uma sociedade só conseguirá garantir o bem-estar na velhice com políticas de prevenção que se tornam ainda mais complexas com a intersecção com as mudanças climáticas e exigem uma Política Nacional de Cuidados compatível com o contexto ambiental e epidemiológico, principalmente sob os efeitos prolongados das covid-19 e ameaças de novas pandemias.
No Brasil, vale sempre a pena repetir, a necessidade é maior devido às abismais desigualdades sociais. Todas estas pesquisas apenas apontam para a necessidade de mais investigações nesta área da demografia ecológica. Só assim poderemos evitar mortes e garantir a promessa de longevidade humana.
*Jorge Felix é presidente do Conselho de Administração da The Conversation Brasil e professor de pós-graduação em Gerontologia da Universidade de São Paulo (USP).
Este artigo foi publicado no The Conversation e reimpresso aqui sob uma licença Creative Commons. Clique aqui para ler a versão original.
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