Com os olhos fechados. É assim que os investigadores trabalham contra o tempo para compreender o novo clado — ou variante — do mpox, responsável pelo atual surto, que surgiu na República Democrática do Congo (RDC). “Estamos a trabalhar às cegas”, disse na semana passada o especialista em doenças infecciosas Dimie Ogoina, presidente do comité de emergência da Organização Mundial da Saúde (OMS) para a doença no continente africano. Negligenciada por décadas, a doença voltou com uma nova cara, ainda pouco conhecida pela ciência.
“Não diria que somos completamente cegos, mas é como se fôssemos míopes sem óculos, vendo tudo embaçado”, compara Vanderson Sampaio, doutor em Medicina Tropical, professor de pós-graduação da Fiocruz Amazônia e da Universidade do Estado do Amazonas, e diretor do atuação no Instituto Todos pela Saúde (leia entrevista nesta página). O problema é que, se já havia pouca literatura científica sobre uma doença que, desde a sua descoberta na década de 1950, não chamava a atenção da indústria farmacêutica, menos ainda se sabe sobre o clade 1b, aparentemente mais agressivo que o clade 2, responsável pelo surto de 2022.
Na sexta-feira, a OMS informou que a RDC já registou 18 mil casos prováveis ou suspeitos este ano, com 629 mortes. “O número de casos da nova variante tem aumentado rapidamente há várias semanas”, disse Tedros Adhanom Ghebreyesus. Fora da República Democrática do Congo, há 258 relatos do clado 1b no Burundi; quatro em Uganda; dois no Quénia e quatro no Ruanda. Fora do continente africano, até agora foi registada uma ocorrência na Suécia e outra na Tailândia.
Artigos
As publicações científicas sobre mpox são escassas — no Pubmed, um dos maiores indexadores de artigos biomédicos — há apenas 44 registros dos últimos 12 meses, número que cai para quatro quando se pesquisam estudos clínicos. Na Califórnia, Estados Unidos, cientistas do Instituto de Imunologia La Jolla (ILJ) estão a liderar pesquisas sobre o potencial do clado 1b afetar crianças e idosos e procuram compreender como novas vacinas podem ajudar o corpo a reagir.
Atualmente, a vacina mais segura é a de terceira geração de uma substância relacionada ao vírus da varíola, erradicado na década de 1970. É considerada extremamente eficaz, mas não se sabe se futuras mutações poderão criar resistência à vacina. “O vírus mpox do clade 1b é completamente novo e a situação está evoluindo rapidamente”, diz Alessandro Sette, codiretor do Centro de Inovação de Vacinas do ILJ. “O novo comportamento viral pode mudar o jogo e também afetar uma gama mais ampla de pacientes, incluindo mais crianças, mulheres e pacientes mais velhos”, diz ele.
A pesquisa que realiza analisa as respostas imunológicas em diferentes grupos, procurando diferenças dependendo da idade ou do sexo. Segundo Sette, uma questão que precisa ser respondida o mais rápido possível é se a vacina atual consegue treinar células de defesa para reconhecer a nova cepa. “Não está claro quão diferente este vírus é da cepa 2022 — ou onde estão as diferenças nas proteínas virais”, admite o cientista.
Complicações
A infectologista Helena Brígido, professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), destaca que as observações do novo surto apontam para especificidades do clado 1b — não apenas em relação ao perfil dos pacientes afetados, mas em termos de complicações. “Mais casos de uveíte, infecção nos olhos; miocardite, no coração, e infecções bacterianas em quem tem a doença”, diz ela. Ela destaca que a OMS tem relatos de transmissão vertical, de mãe para bebê, embora ainda não se saiba se isso ocorre pelo contato com lesões no momento do nascimento. “Também há relatos de abortos espontâneos e prematuridades”, diz ela.
O médico ressalta que a propagação da doença no surto atual é muito rápida, algo que não havia sido visto anteriormente. “É a primeira vez que vemos uma propagação nesta velocidade e com mais complicações”. No entanto, Helena Brígido afirma que não é possível afirmar se novas mutações poderão tornar o mpox ainda mais virulento e letal.
Para Eoghan de Barra, consultor de doenças infecciosas do Hospital Beaumont, na Irlanda, é preciso ampliar o planejamento para combater a doença. “Em 2022, as infecções foram causadas por um clado menos virulento e os programas de testes, educação e vacinação foram implementados de forma limitada. Temos as ferramentas para impedir o impacto do mpox na saúde humana, mas precisamos de recursos, educação e investigação contínua. pesquisa científica para isso.”
Negligência e preconceito
A negligência que sempre acompanhou a mpox pode explicar por que surgiu um surto da doença apenas dois anos depois, diz Vanderson Sampaio (foto), doutor em Medicina Tropical, professor de pós-graduação da Fiocruz Amazônia e da Universidade do Estado do Amazonas, e diretor de operações da Instituto Todos pela Saúde. Em entrevista ao Correio ele alerta que ignorar a doença pode transformá-la no “novo HIV”. “A Aids começou exatamente assim, com negligência e preconceito”, diz.
O que poderia explicar dois surtos tão próximos um do outro?
Trabalhei muitos anos no controle da malária, que também é uma doença negligenciada. Alguns pesquisadores chamaram esse fenômeno de “vale da morte”. Você tem um aumento de casos de uma determinada doença que preocupa a sociedade, então são criados programas para controlar isso, é feito um investimento. Os casos diminuem ao ponto de serem tão baixos que o governo decide que eles têm problemas maiores… E esse investimento é desmantelado. As pessoas são abandonadas pelo sistema, e é nesse momento que observamos o aumento da letalidade, a disseminação mais rápida da doença. Se você não controlar essa doença, ela volta. Atrevo-me a dizer que é isso que observamos hoje: o vírus foi negligenciado e depois fez o que faz de melhor: mutações.
MPox é um novo covid?
É até difícil dizer isso porque quando dizemos não as pessoas acham que está tudo bem e esse é o primeiro passo para a negligência. Não é cobiçado no sentido de que não se espalhará tão rapidamente nem colapsará o sistema de saúde. Mas mesmo que a mpox não seja uma doença sexualmente transmissível, posso compará-la à epidemia do VIH, que começou exactamente assim. As pessoas tinham esse pensamento: “Não me importa, só quem tem essa doença é homossexual”. Foi aí que nasceu a negligência, com o preconceito, e que levou ao que aconteceu.
O que há de novo no clado responsável pela atual epidemia de mpox?
Este vírus foi descoberto na década de 1950. A cada conjunto de mutações que sofre, são geradas novas variantes, que são formas genéticas distintas da original. São dois grandes clados, 1 e 2. O 2 foi o responsável pela epidemia de 2022, que tivemos até no Brasil. O Clade 1 nunca deixou de existir. Estava concentrado na África Central, principalmente na República Democrática do Congo. As características eram muito semelhantes às do 2: circulava principalmente entre profissionais do sexo e todos que mantinham contato íntimo próximo, mas limitado aos adultos. A novidade é que nesse clado 1b aparentemente — e digo aparentemente porque não temos estudos que façam essa relação — há predomínio da infecção em crianças. É uma correlação, não uma causalidade. E há outra característica: estas crianças têm uma letalidade quase cinco vezes superior à esperada para este vírus. De cada 100 crianças que adoecem, 10 morrem. Como não temos estudos sobre o assunto, pode ser que não esteja exatamente relacionado ao vírus, mas sim ao manejo clínico. Talvez estas crianças não tenham acesso a serviços de saúde adequados.
Como está indo a pesquisa sobre mpox?
Há muito pouca pesquisa, quase nenhuma. Estamos a falar de uma doença endémica num continente já negligenciado e que, por si só, o explica. Mas a própria academia imaginou que, se tivermos uma vacina eficaz, a mesma da varíola, o vírus poderá ser erradicado quando quisermos. Mas quando iremos querer isso? Aparentemente não nos incomoda, não é o Covid… Acho que isso faz parte do problema, o descaso com a pesquisa também. E é assim que somos pegos de surpresa, como agora. Temos uma indústria farmacêutica que, obviamente, visa o lucro. Não entrará num ensaio clínico muito caro se não houver mercado para um medicamento. Muito depende da iniciativa do Estado, que não visa o lucro, mas o bem-estar. É o Estado quem deve incentivar os estudos, não apenas ensaios clínicos, mas estudos de coorte, para compreender a evolução clínica da doença. Além de capacitar profissionais de saúde para o manejo da doença. (PÓ)
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