A controversa reforma do Poder Judiciário México – considerada a mudança mais profunda no setor nos últimos 30 anos – está muito próxima de se tornar realidade.
A Câmara dos Deputados aprovou a reforma nesta quarta-feira (9/4). Afinal, desde a vitória nas últimas eleições, no início de junho, o governo detém maioria qualificada na Câmara, o que lhe permite aprovar alterações à Constituição sem dificuldades.
Nos próximos dias, as medidas serão discutidas no Senado, onde o atual governo está a uma cadeira de garantir dois terços do Legislativo.
A reforma é considerada parte fundamental do legado do presidente Andrés Manuel López Obrador (conhecido pelas iniciais AMLO). Seu mandato termina em 1º de outubro e em seu lugar a presidente eleita, Claudia Sheinbaum, assumirá.
O projeto recebeu duras críticas da oposição e de organizações especializadas. Ele foi eleito em meio a uma greve sem precedentes e por tempo indeterminado de milhares de juízes e funcionários do Judiciário.
Os deputados tiveram que votar a iniciativa em outro prédio, fora do Legislativo, que foi bloqueado por grevistas contrários ao projeto.
Os manifestantes acreditam que a reforma mina a independência dos poderes e enfraquece a democracia.
O projeto foi apresentado ao Congresso em fevereiro. Na altura, a coligação Morena do governo mexicano ainda não tinha votos suficientes para aprovação.
Mas agora, com a posse do novo Congresso, não houve obstáculos para a aprovação da iniciativa na Câmara. E, no Senado, embora a coligação não tenha a mesma maioria, não parece ser difícil negociar o único voto necessário para a aprovação.
A BBC News Mundo, serviço de notícias espanhol da BBC, apresenta três pontos fundamentais para entender o que muda no México com a histórica reforma do Judiciário.
1. Qual é a mudança proposta
O ponto mais inovador e polêmico da reforma é a eleição, por voto popular, de quase 2 mil desembargadores e magistrados do Poder Judiciário federal, a partir do próximo ano.
A proposta é que os três poderes – Executivo, Legislativo e Judiciário – apresentem listas de candidatos para que as pessoas possam votar.
O texto estabelece que a presidência do Supremo será renovada a cada dois anos, alternadamente, dependendo do número de votos obtidos por cada candidato nas eleições.
No sistema atual, os 11 ministros do Supremo Tribunal elegem o seu presidente. E estes, por sua vez, são eleitos pelo Congresso e nomeados pelo Presidente da República.
O projeto prevê redução do mandato de juízes e ministros, além de reduzir o número de magistrados no Supremo Tribunal Federal e na Justiça Eleitoral.
Contempla também duas eleições para renovação de cargos no Judiciário. A primeira delas é extraordinária e deverá ser realizada em junho de 2025. A segunda está prevista para 2027.
A eliminação da pensão vitalícia dos actuais e futuros ministros do Tribunal e o ajustamento da sua remuneração ao limite máximo estabelecido para o Presidente da República são outras medidas que fazem parte do projecto.
Por outro lado, a reforma cria um órgão disciplinar e administrativo do Poder Judiciário, independente do Tribunal. Eles seriam responsáveis pelas questões relacionadas à carreira judiciária e ao controle interno, além de preparar o orçamento.
O novo Órgão de Administração Judicial será composto por cinco pessoas, nomeadas por um período de seis anos. Um deles será indicado pelo Poder Executivo, outro pelo Senado e os três restantes pelo Supremo.
Esta é uma reforma do Judiciário federal, e não do sistema de justiça mexicano como um todo. Portanto, não afeta os sistemas locais, nem os procuradores, que analisam a maioria dos casos no país (80%, segundo dados oficiais).
Por esta razão, os analistas defendem a necessidade de uma reforma específica para impulsionar mudanças a nível local, onde tende a ocorrer a maioria dos casos de corrupção no sistema de justiça.
2. Por que é controverso
Os oponentes da emenda argumentam que a eleição de juízes por voto direto nas urnas “politizará” a justiça.
Ou seja, em vez de aumentar a independência e a transparência dos juízes, a reforma favorecerá a seleção política dos candidatos, sem considerar as capacidades profissionais de cada um e as promoções baseadas no mérito.
Uma das críticas mais frequentes é que a nomeação favorecerá candidatos que tenham rede de contatos, que tenham financiamento ou aliados políticos do governo.
Há também o receio de que a reforma abra a porta ao crime organizado para financiar candidaturas ou tirar partido de juízes menos experientes – o que já está a acontecer hoje, em muitos aspectos.
Em carta enviada ao Congresso, juízes e magistrados alertaram que a reforma do Judiciário não respeita as regras do tratado comercial entre México, Estados Unidos e Canadá (T-MEC), em aspectos como o compromisso de estabelecer e manter “independência tribunais para a resolução de conflitos laborais”.
À polémica interna juntou-se o alerta da Embaixada dos Estados Unidos no México, descrevendo a proposta como um “risco maior” para a democracia, podendo ameaçar o acordo comercial entre os três países, a ser revisto em 2026.
Entre outras reações contrárias, o Relator Especial das Nações Unidas para a Independência de Juízes e Advogados apelou à reconsideração do projeto para proteger a “independência do Poder Judiciário”.
A organização de direitos humanos Human Rights Watch também expressou um argumento semelhante. A proposta, segundo ela, fragiliza “a independência do Poder Judiciário, a privacidade e a responsabilização”.
Os investidores também manifestaram a sua preocupação com a reforma. Dizem temer que o próximo governo tenha todas as ferramentas necessárias para implementar leis que possam prejudicar o setor empresarial, retirando a segurança jurídica aos investimentos de longo prazo ou aumentando a percepção de risco.
Os defensores da reforma argumentam que a transformação do Judiciário é uma forma de garantir que o novo presidente possa governar sem os obstáculos legais enfrentados por AMLO para fazer avançar a sua agenda “humanista”.
O atual presidente afirmou, em repetidas ocasiões, que os tribunais se tornaram uma trincheira da oposição, ao serviço dos mais poderosos.
3. Por que AMLO considera importante para o seu legado
Durante o seu mandato, Andrés Manuel López Obrador promoveu um ambicioso projeto de esquerda, que foi denominado 4T – a “Quarta Transformação”.
Tal como ocorreu com a Independência do México, a Reforma e a Revolução de 1910, o projeto visa mudar “os alicerces da sociedade mexicana”, segundo o governo.
Neste contexto, a reforma judicial aparece como um movimento essencial na agenda de reformas do presidente. E Claudia Sheinbaum pretende dar continuidade a essas reformas.
Para dar impulso à Quarta Transformação, AMLO defende que é necessário acabar com as estruturas de poder “corruptas” que dominaram os rumos do país durante décadas – entre elas, o Judiciário.
Segundo o presidente, o seu objetivo é estabelecer um verdadeiro Estado de direito, para que os juízes “não estejam ao serviço de uma minoria”.
AMLO enfrentou duros confrontos com o Supremo Tribunal, que bloqueou as suas reformas no passado. Um exemplo foi o projeto que ampliou a participação estatal no setor energético.
O governo considera que a reforma do Poder Judiciário é a pedra angular que lançará as bases para a implementação de outras mudanças no país. Por isso, considera-o um dos pilares fundamentais do projeto 4T.
O presidente mexicano tem menos de um mês até deixar o cargo para aproveitar a maioria obtida com a nova legislatura e aprovar os seus últimos projetos.
Dessa forma, ele poderá sustentar seu legado antes do próximo mandato presidencial – que, no México, é de seis anos.
Inspiração política
Análise de Daniel Pardo, correspondente da BBC News Mundo no México
O que para alguns é a democratização da Justiça, para outros é a sua cooptação política. Mas, independentemente do resultado, é evidente que a inspiração da reforma é política.
Na prática, pretende restringir os poderes do Supremo Tribunal e a sua capacidade de criar obstáculos ao Executivo, que teve várias das suas reformas truncadas por argumentos judiciais, durante os seis anos do mandato de Andrés Manuel López Obrador.
A reforma, em princípio, pode parecer uma forma de aproveitar a popularidade da coligação Morena para ganhar poder. Mas a médio prazo, se o apoio popular diminuir, poderá ser prejudicial.
Há eleições para juízes por voto popular em dois países do continente: nos Estados Unidos (apenas a nível local) e na Bolívia, onde a abstenção e os boicotes da oposição têm impedido a verdadeira democratização do sistema judicial.
Ninguém nega que a justiça mexicana precisa de reforma. Não muda há anos, tem uma das mais altas taxas de impunidade, herdou vícios do sistema de partido único e as pessoas não o sabem nem o compreendem.
A eleição de juízes também inclui apenas requerimentos apresentados pelo Executivo. Em outras palavras, por definição, hoje é politizado.
Em qualquer caso, os especialistas concordam que a maioria dos problemas do Judiciário está onde as reformas não conseguem chegar: nos gabinetes do Ministério Público e nos sistemas regionais.
A sua aprovação na Câmara dos Deputados sem retrocessos, mas com protestos ocasionais, evidencia a ruptura que existe entre o sistema tradicional, judicial e político, e as novas maiorias mexicanas do 4T.
Também parece claro que a oposição saiu das eleições de Junho muito fragmentada e sem narrativa, para poder combater um movimento popular como a coligação Morena.
AMLO governará até ao último dia como fez desde o primeiro – sem deixar ninguém indiferente. A questão é como isso pode afetar seu sucessor.
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