Andrea Bocelli transforma o Estádio Mané Garrincha, hoje, em palco de uma grande comemoração de 30 anos de carreira com um repertório que já encantou meio mundo e um show que presta à música erudita um serviço raramente alcançado por uma orquestra ou um tenor . Bocelli é herdeiro de uma tradição que começou com os Três Tenores, quando o maestro Zubin Mehta levou Luciano Pavarotti, Domingos Carreras e Plácido Domingo ao palco lado a lado para cantar standards do mundo da ópera. O sucesso foi tanto que se tornou um formato e quase um gênero. Italiano nascido em Lajatico, região da Toscana, perto de Pisa, Bocelli, de 65 anos, deu um brilho mais popular e performático à ideia.
Já foram mais de 90 milhões de discos vendidos desde que começou a fazer sucesso ao vencer o Festival de Música de Sanremo em 1994. Hoje, ocupa o palco como um dos maiores nomes do canto operístico quando o assunto é lotar estádios. A ele se juntarão a soprano romena Cristina Pasaroiu, experiente em cantar os maiores personagens da história da ópera, e a violinista norte-americana Caroline Campbell, que dividiu o palco com nomes como Sting, Steven Tyler, Michael Bublé e Rod Stewart. Pasaroiu será a voz feminina em duetos com árias das óperas Andrea Chénier (Umberto Giordano) e La Bohème (Puccini). “O dueto é um empreendimento artístico que sempre me intrigou e satisfez. É um dos pilares do teatro musical, além de ser escolha de muitos clássicos pop”, diz Bocelli, em entrevista ao Correio. Ele gosta tanto dos duetos que lançará, ainda este ano, um álbum duplo nesse formato para celebrar a jornada.
O pianista Carlo Benni, colaborador de Ennio Morricone e Laura Pausini, é o responsável pelas harmonias. A cantora e atriz Sandy é a convidada brasileira do show, com quem Bocelli canta Canto della terra e Vivo Per lei. O filho Matteo Bocelli também estará ao lado de seu pai para compartilhar os vocais em Fall on me. Brasília é a segunda parada de uma turnê que começou em Belo Horizonte e termina em São Paulo, no próximo fim de semana.
Em todos os shows, o tenor foi acompanhado pela Orquestra Jovem e pelo Coral Juvenil do Estado de São Paulo, prática que leva a todos os lugares que frequenta para integrar jovens músicos ao espetáculo. A dançarina italiana Angelica Gismondo completa o elenco. No repertório, uma mistura que encanta um público amplo e ajuda a popularizar a música erudita. Há espaço para uma ária de Carmen, outra de Traviata, mas também clássicos italianos populares como Vivo per lei, bossa nova do Corcovado ou Garota de Ipanema, os tangos e boleros inevitáveis do repertório internacional. “Bocelli tem um pouco desse papel de pegar os clássicos e dar uma roupagem mais popular para que essas músicas se tornem um produto mais acessível”, comenta Claudio Cohen, regente da Orquestra Sinfônica do Teatro Nacional Claudio Santoro. “É um papel muito importante porque populariza os temas mais clássicos, leva-os ao grande público.”
A voz lírica do tenor confere um ar romântico aos clássicos populares e à apresentação com bailarino e convidados, aspecto mais dinâmico a um espetáculo que também é música erudita. “Será um show muito bonito”, prevê o tenor Alexandre Innecco, idealizador do ECAI em Brasília, espaço de formação em música erudita. “Bocelli faz parte de uma geração de tenores que tentam fazer shows com um toque de música clássica”. Para a soprano Janette Dornellas, é um papel importante para o cenário musical em geral. “É um repertório mais palatável, que entra na cabeça com facilidade. A música é boa. Tem boa produção, com bons músicos, e isso faz com que conquiste muita gente. Isso é ótimo para o mercado de música erudita”, diz o cantor e professor de canto lírico.
Entrevista//Andrea Bocelli
A versatilidade é uma de suas marcas, e seu repertório inclui sempre composições mais clássicas e músicas mais populares. Quão importante é fazer essa mixagem para um cantor lírico?
A minha formação é clássica e prefiro a ópera lírica: adoro as grandes árias de Puccini, Verdi, Mascagni, mas também de Bizet, Gounod e muitos outros autores. Porém, também frequento um repertório mais “leve”, que inclui a grande romanza popular, além da canção. Não inventei nada de novo, porque há 100 anos, meus excelentes colegas como Enrico Caruso e Beniamino Gigli fizeram isso. Quanto aos gêneros, geralmente procuro não misturá-los, mas sim justapô-los, sem preconceitos, em busca de momentos artísticos que sejam capazes de emocionar o público.
Para você, existem fronteiras entre o clássico e o erudito? Quais seriam essas fronteiras?
No contexto da música e, portanto, do intangível, é sempre difícil dar definições precisas e estabelecer limites. A ópera lírica é, fisiologicamente, uma forma de arte popular e, em geral, o repertório clássico pode falar ao coração de todos. Da mesma forma, alguns grandes sucessos pop são tão bonitos que se tornam “clássicos” em todos os sentidos. É verdade que o prazer de uma ópera lírica ou de uma sinfonia nem sempre é imediato. Estamos a falar de um repertório que se desenvolveu profundamente ao longo do tempo, e cada grande compositor o renovou e fez crescer ao longo dos séculos. Mas esta «complexidade» — que exige esforço, mas não uma erudição particular — é amplamente recompensada, porque é a música que oferece sensações tão profundas que permanecem no coração durante toda a vida, contribuindo potencialmente para o desenvolvimento espiritual de cada pessoa. nós.
Ouvimos muito que a música clássica é algo de nicho, mas é uma música que, quando as pessoas ouvem, adoram. Por que essa separação é feita?
A única distinção realmente significativa, o único critério que adoto pessoalmente, é distinguir entre música bonita e música feia. É claro que ainda persiste o equívoco que rotula o repertório clássico como “para poucos”, elitista… Naturalmente, é uma insinuação falsa e anti-histórica. Não esqueçamos que, na época de Giuseppe Verdi e Giacomo Puccini, grande parte do público do teatro era formado por pessoas com pouca ou nenhuma alfabetização. Se for conduzido pela mão, qualquer público pode descobrir um repertório capaz de oferecer alegria e exaltação saudável, evocando emoções primordiais com uma intensidade que pode anular qualquer barreira cultural e geracional.
Você é uma das vozes que ajudam a música clássica a chegar a todos os públicos. Qual é o desafio disso?
Nós, profissionais da área, temos a responsabilidade de dar o primeiro passo, se necessário, saindo dos teatros e encontrando os iniciantes, fazendo-os ouvir peças clássicas mesmo que não estejam acostumados com esse repertório. É nossa responsabilidade e prazer ampliar horizontes, para que o público possa verdadeiramente escolher o que quer ouvir, sem se submeter ao que o show business tende a impor através da mídia, mas decidindo por conta própria. Lembrando sempre que, na música, e na arte em geral, o que é belo e tem valor não envelhece, independentemente de ter sido criado ontem ou há 200 anos. As arenas, onde atuo frequentemente, são locais onde tenho a oportunidade de atingir grandes públicos. Mas, naturalmente, os teatros seriam os locais ideais para esse repertório. É verdade que a ópera dificilmente “funciona” na televisão. Você precisa ir ao teatro, ou pelo menos ter contato direto, visceral e pessoal com essa extraordinária forma de arte. Arte que, em alguns casos, infelizmente, correu o risco de esquecer, nas últimas décadas, a sua vocação, que é, vale reiterar, popular. Pela minha parte, durante 30 anos tentei dar a minha modesta contribuição para trazer um novo fôlego à ópera.
Como é sua relação com a música brasileira? Haverá música brasileira no repertório?
Tenho uma relação especial com esta parte do mundo e com a sua — a sua — música. Adoro o repertório brasileiro desde que toquei em piano-bares do interior (na Itália). Estudei e cantei a sua música, admirei as obras-primas e o equilíbrio perfeito entre a sua riqueza rítmica e a linguagem extraordinária, sensual e harmoniosa que lhes confere a sua voz. Acredito que a música é parte fundamental do tecido cultural e social do Brasil. Eu me apaixonei por ela quando era jovem e nunca deixei de amá-la.
Depois de tantos anos, qual é o seu maior desafio quando sobe no palco?
Quanto mais os anos passam, mais sinto necessidade de comunicar emoções positivas, de transmitir energia positiva em palco: a música, afinal, é a voz da alma e pode, e deve, levar consigo uma forte mensagem de paz e fraternidade. Acredito que todo artista deve perceber o papel essencial que desempenha na sociedade. A beleza, hoje mais do que nunca, acredito ser fundamental praticá-la, incentivá-la e divulgá-la.
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