No dia 2 de novembro, por volta das 14h, dois monges foram presos em uma rua próxima ao Palácio do Catete, no Rio de Janeiro, por agentes da repressão — Rubens de Souza Pacheco, Alcides Paranhos Júnior e Luiz Zampolo. Eles foram levados ao Cenimar (Centro de Informações da Marinha) e colocados em salas diferentes. O delegado Sergio Fernando Paranhos Fleury liderou o interrogatório dos religiosos que foram submetidos a intensa tortura —socos, pauladas de arara e choques nas mãos, pés e partes íntimas.
Um deles relembrou: “arrancaram-me a roupa, penduraram-me numa vara de papagaio, ligaram os eléctrodos aos meus ouvidos e genitais; armaram-se com paus, rodaram a manivela, fizeram-me tremer sob a virulência das descargas eléctricas”.
O episódio está descrito na denúncia apresentada pelo Ministério Público Andrey Borges de Mendonça contra quatro ex-agentes da ditadura como responsáveis pela morte de Carlos Marighella, um dos mais importantes líderes da luta contra o regime militar. A ação criminosa é resultado de um trabalho investigativo reaberto há oito anos que visa punir os assassinos de Marighella, falecido há quase 55 anos, na noite de 4 de novembro de 1969.
De acordo com a denúncia, apresentada na Justiça Federal esta semana, Marighella foi atraído para uma emboscada e executado sumariamente. Manteve contacto com os monges que acabaram em consequência das torturas sofridas, revelando onde encontrariam o fundador e líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN). A ação envolveu quase 30 policiais vinculados ao Departamento de Ordem Política e Social (Dops) de São Paulo, sob o comando de Fleury. Os frades foram usados como isca.
Entre os acusados estão quatro ex-agentes que participaram da ação contra Marighella. Amador Navarro Parra, Djalma Oliveira da Silva, Luiz Antônio Mariano e Walter Francisco deverão responder por homicídio qualificado. Segundo a denúncia, eles faziam parte das equipes que abordaram Marighella e atiraram para matar o ativista político considerado o “inimigo público número um” da ditadura.
Na noite de sua morte, Marighella foi à Alameda Casa Branca, em São Paulo, para se encontrar com os dois religiosos. Eles costumavam conversar no carro. Mas ao entrar no veículo, o líder da ALN foi surpreendido por agentes da ditadura que cercavam o local. Marighella levou quatro tiros e morreu instantaneamente. Na denúncia, o Ministério Público incluiu laudos periciais que atestam que os tiros foram disparados à queima-roupa, o que contraria a versão oficial de que o militante reagiu a uma tentativa de prisão.
O promotor afirma que Marighella estava desarmado e que as forças policiais poderiam tê-lo levado sob custódia. “O que se percebe é que, desde o início, a intenção da repressão era matar Marighella, e não prendê-lo vivo”, acredita o promotor Andrey Borges de Mendonça, que colheu depoimento de um dos monges torturados.
O quinto réu é o ex-integrante do Instituto Médico Legal (IML) Harry Shibata, acusado de falsidade ideológica. Ele foi um dos peritos que assinaram o laudo de autópsia de Marighella, com a suposta omissão de informações que demonstrassem a ocorrência de execução sumária.
Para o Ministério Público, a execução de Marighella é considerada crime contra a humanidade, ao qual não se aplica anistia nem prescrição. Segundo o entendimento, o Brasil foi condenado duas vezes pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) por atos de violência e perseguição praticados entre 1964 e 1985. O compromisso do Estado brasileiro com a CIDH também proíbe, segundo o MP, a Judiciário brasileiro a partir de processos de ordem com base na Lei de Anistia (Lei nº 6.683/79).
A ação tramita no 1º Tribunal do Júri Federal da Subseção do Poder Judiciário de São Paulo. Se os acusados forem processados, deverão ser julgados por júri popular. Um dos principais responsáveis pela morte de Marighella, segundo a denúncia, o cacique Fleury faleceu em maio de 1979, dias antes de completar 46 anos, e nunca respondeu pelos crimes dos quais foi acusado durante a ditadura.
“Morreu numa emboscada. Deixou mulher, irmão e filho, deixou inúmeros amigos, um povo que amou desesperadamente e a todos legou uma lição de juventude invencível, de confiança inabalável na vida e no humanismo. Retiro-me de a maldição e o silêncio e inscrever aqui seu nome baiano: Carlos Marighella” (Jorge Amado – Bahia de todos os santos, 1977) — Trecho incluído na denúncia contra os acusados de executar Marighella.
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