Uma casa transcende a mera estrutura de tijolos e cimento, madeira e vidro; ou mesmo argila, no caso das sustentáveis. Seja qual for o tamanho ou onde quer que esteja plantada, cabe a cada um de nós dar-lhe sentido. Só podemos vê-lo como um local físico, capaz de nos oferecer espaços de lazer, higiene, alimentação e descanso. Mas, se olharmos mais a fundo, iremos tratá-lo como um lugar sagrado, onde a vida se desenrola em seus rituais diários e as memórias são tecidas nas dobras do tempo.
Acontece que, com a ascensão do consumismo e a supremacia da tecnologia digital, começamos a flertar com os sistemas de automação residencial. Gadgets que controlam iluminação, climatização, segurança e entretenimento com o toque de um botão ou comando de voz. Se no início eram muito caros, hoje tornaram-se populares, e a ideia de uma “casa inteligente” tornou-se cada vez mais viável e atrativa, promovendo uma enorme integração da tecnologia no ambiente doméstico.
Na prática, isso significa que automatizamos tarefas mundanas como ligar o som, acender as luzes ou baixar as persianas. Além disso, trocamos até hábitos comuns e reconfortantes, como passar um café no coador, inserir uma cápsula na máquina, sem perceber o impacto ambiental gerado por cada uma que vai parar no lixo, formando pilhas.
Morando na casa
Em busca do caminho do meio, já que a tecnologia tem as suas vantagens, não será altura de refletir novamente que uma casa é feita menos dos seus contornos arquitetónicos e mais dos momentos que a habitam? Na visão do arquiteto e escritor Carlos Solano, a palavra “habitar” implica estar presente e apropriar-se de si. Ele destaca que uma casa, descrita pelo arquiteto Friedensreich Hundertwasser (1928-2000) como “mais uma pele de você mesmo”, deve ser um espaço que respeite a nossa sensibilidade e o que ali se vivencia.
“Você tem que viver dentro de si mesmo para realmente viver em casa. A tecnologia é bem-vinda, mas não devemos deixar que ela se sobreponha às experiências que nos movem, aos ritmos que nos são naturais, à ligação com as nossas raízes, histórias, memórias afetivas, o que é crucial para nós”, argumenta Solano, autor de livros que exaltar o bem-estar no lar, como Casa Natural (edição do autor) e Nossa casa cotidiana (Laszlo).
Hora de ser
A tecnologia deve nos ajudar a ter mais tempo de vida. “Com ele poderíamos agilizar nossas tarefas para, como diz uma amiga, acordar no seu ritmo, respirar, se movimentar, meditar, definir intenções para o dia. Agradeça por estar vivo. Lembrar quem somos, o que sonhamos, o que amamos, o que queremos, do que somos capazes, do que estamos a serviço”, filosofa o arquiteto. Porém, cada vez mais, a tecnologia incentiva a velocidade, a automação, o imediatismo e, nesta esteira transportadora a jato, os tesouros do cotidiano ficam para trás.
Opinião muito semelhante é a da artesã e educadora Fabi Florinda, criadora do Manual Escola Vida, dedicado a ensinar competências que permitam às pessoas criar, reparar e manter objetos e tradições que enriqueçam o seu dia a dia e minimizem o desperdício. impacto ambiental.
Na visão do professor, a tecnologia deve servir ao ser humano, à vida e à natureza, disponibilizando mais tempo e energia para que todos possam se conectar com o que realmente importa, como o relacionamento entre as pessoas e o cultivo de um propósito.
“Uma máquina de lavar louça pode nos liberar para passar mais tempo cozinhando com nossos filhos ou fazendo outros trabalhos manuais. A internet pode nos colocar em contato com informações e sabedorias que antes estavam muito distantes”, elogia.
Quem faz as escolhas?
O problema é que a tecnologia não está nos servindo. Estamos servindo ela. Dessa forma nos distanciamos da natureza e uns dos outros. Mas, felizmente, existem contrapontos. O trabalho realizado com as nossas mãos é até uma antítese ao avanço esmagador dos dispositivos nas nossas casas.
Fabi acredita que esse resgate não é apenas uma volta às raízes, mas um movimento essencial para reconstruir a conexão perdida com o processo de criação. “No ritmo frenético de hoje, em que tudo é instantâneo e efêmero, o artesanato surge como um ato de resistência”, explica. E a cada dia esse estilo de vida ganha novos adeptos, provando que a nossa alma quer ser realizada.
Como criar um casulo
Uma casa é apenas um bem material. Uma casa é profunda, envolve história e significado. Fabi observa dois processos que se entrelaçam na tessitura de um ninho: o despertar do corpo e o despertar do sentimento. A primeira consiste em reaprender e praticar a habilidade de fazer.
“É simples, basicamente aprender a fazer coisas do dia a dia com as próprias mãos. Alimentos, produtos de limpeza, cosméticos, costuras”, afirma a artesã. Mas isso, por si só, ainda não traz a sensação de casulo. “Também é necessário acorde sentimentos. Só quando estamos atentos, observadores e disponíveis para sentir é que percebemos a sacralidade que reside nas pequenas coisas do dia a dia.”
Essa compreensão remete ao que Carlos Solano chama de receita maravilhosa de cuidado com a pessoa e com o lar, fruto da cultura popular de nossas avós. “A avó é um arquétipo do cuidado, do feminino ancestral e sábio.”
Em cada linha de costura, em cada grão de café filtrado manualmente e em cada planta que floresce sob nossos cuidados, reafirmamos o lar como um santuário de histórias e tradições. Ponto de encontro onde o coração descansa e a alma dança.
Por Gustavo Ranieri – revista Vida Simples
Jornalista e poeta. Em cada canto da sua casa procura a poesia do quotidiano e a essência dos momentos partilhados.
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