Por muito tempo, a saúde mental esteve confinada ao cérebro. Porém, nas últimas décadas, aumentou a compreensão de que as alterações psiquiátricas, neurológicas e psicossociais fazem parte de uma rede muito mais complexa, incluindo a microbiota intestinal. Mais recentemente, pesquisadores começaram a propor um elemento a mais ao conjunto: os microrganismos bucais.
A hipótese está ancorada no chamado eixo intestino-cérebro, que vem sendo estudado há muito tempo. “Esta é uma comunicação bidirecional entre o cérebro e o intestino, que conecta os centros emocionais e cognitivos do cérebro com as funções intestinais periféricas”, explica Nick Spencer, professor da Faculdade de Medicina e Saúde Pública da Universidade Flinders, na Austrália, que estuda o tópico. “Avanços recentes na investigação descreveram a importância da microbiota intestinal na influência destas vias.”
Estudos com modelos animais e organoides (grupos de células cultivadas em laboratório que reproduzem a função de um órgão) encontraram evidências de que alterações no eixo microbiota-intestino-cérebro estão relacionadas a diversos distúrbios. “Incluindo doenças psiquiátricas, como esquizofrenia, ansiedade, humor e transtornos do neurodesenvolvimento”, diz artigo das universidades da Pensilvânia e de Maryland, nos Estados Unidos, publicado na revista Frontiers in Psychiatry.
Eixo triplo
Os autores da pesquisa defendem que a microbiota oral também faz parte do conjunto. “A boca é o início do sistema digestivo e a principal porta de entrada para todas as coisas – inclusive os micróbios – acessarem o organismo”, afirmam. A cirurgiã-dentista Elisa Grillo Araújo, que investiga a associação entre a periodontite, uma infecção bucal, e a saúde em geral, afirma que, apesar das diferenças entre a mucosa intestinal e oral, os estudos do eixo boca-intestino-cérebro destacam cada vez mais as interações entre microbiomas.
A pesquisadora, doutoranda pela Universidade de Brasília (UnB), lembra que microrganismos podem invadir outros órgãos quando há distúrbios na flora. “A inflamação leva ao rompimento da barreira gengival, permitindo que as bactérias entrem na corrente sanguínea, atingindo outras partes do corpo”, explica. Isso inclui o cérebro. Existem também mecanismos indiretos. “A periodontite aumenta a inflamação sistêmica, e essa inflamação aumenta o risco de outras doenças inflamatórias crônicas”, destaca Elisa Grillo Araújo. Satoshi Yamaguchi, pesquisador da Universidade de Tohoku, no Japão, afirma que a perda de dentes e doenças infecciosas nas gengivas podem até estar associadas à doença de Alzheimer. Espera-se que a neurodegeneração afete 74 milhões de pessoas até 2034, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
Yamaguchi é autor de um estudo publicado na revista Neurology que descobriu uma associação entre falta de dentes e doença periodontal com encolhimento do hipocampo, área do cérebro que desempenha um papel importante na memória. “Nosso estudo descobriu que essas condições podem desempenhar um papel na saúde da área do cérebro que controla o pensamento e a memória, dando às pessoas outro motivo para cuidar melhor dos dentes.” Ele ressalta, porém, que a pesquisa não comprova relação de causa e efeito.
Volume
No estudo, 172 pessoas com idade média de 67 anos e sem problemas de memória foram submetidas a exames dentários e cerebrais para medir o volume do hipocampo. O número de dentes dos voluntários foi contado e os pesquisadores também avaliaram a saúde do tecido gengival.
Quatro anos depois, todos os testes foram refeitos. Os pesquisadores descobriram que um dente perdido equivalia a quase um ano de envelhecimento cerebral em pessoas com doença gengival leve. No entanto, também notaram um efeito oposto: a dentição mais preservada nos participantes com periodontite grave, ao contrário, aumentou o encolhimento do hipocampo. “Esses resultados destacam a importância de preservar a saúde dos dentes e não apenas de mantê-los”, afirma Yamaguchi, destacando a necessidade de mais estudos para aprofundar a associação encontrada.
Existem muitas outras formas que podem explicar a relação entre o estado dos dentes e os distúrbios que afetam a mente, destaca o cirurgião-dentista João Palmieri. “Cada dente é um órgão de detecção neural independente. Cada dente tem sua respectiva imagem dentro do cérebro. Do ponto de vista neurológico, mesmo que não saibamos exatamente qual o papel neurológico que desempenham, existe uma associação clara.”
Cirurgião-dentista do Sistema Único de Saúde (SUS) e coordenador de Odontologia do Centro Universitário Facens, em Sorocaba (SP), Diego Garcia Diniz lembra que as deficiências de micronutrientes relacionadas à perda dentária têm impacto em condições mentais e neurológicas, como a demência. “O próprio estímulo mastigatório está associado ao desenvolvimento e manutenção cognitiva. Então, à medida que se perde esse estímulo, estudos sugerem um agravamento da situação”, afirma.
Psicossocial
Diniz destaca ainda a importância dos aspectos psicossociais relacionados à saúde bucal, além dos mecanismos biológicos. Estudos associam a perda dentária, por exemplo, a maiores índices de ansiedade, depressão e isolamento social — este último, fator de risco para a doença de Alzheimer. “A perda dentária tem um impacto social imenso e podemos perceber isso no consultório, o quanto a falta de dentes impacta na autoestima e na qualidade de vida”, afirma.
Um artigo da Universidade Médica e Odontológica de Tóquio, no Japão, por exemplo, analisou dados de mais de 169 mil americanos e descobriu um aumento nos sintomas de depressão – medidos por um questionário estabelecido – com cada dente a menos. Na revista BMJ Open, pesquisadores da Universidade de Birmingham, no Reino Unido, examinaram informações de quase 61 mil pessoas e descobriram que, entre aqueles com histórico de doença periodontal no início do estudo, aumenta o risco de desenvolver um transtorno mental. em três anos foi de 37%, em comparação com aqueles que tinham gengivas saudáveis.
Os impactos psicossociais da perda dentária foram abordados por Cristiane Alvez Paz de Carvalho, professora associada do Departamento de Saúde da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. É autora correspondente de um artigo publicado na revista Ciência Plural, que revisou 14 estudos sobre as consequências do edentulismo em idosos. Entre os dados, 55% dos entrevistados admitiram prejuízos na qualidade de vida, mesmo percentual daqueles que acreditavam que pelo menos uma de suas atividades diárias era prejudicada pela falta de dentes.
“A relação e a expressão das pessoas com a boca envolvem aspectos muito subjetivos, que podem influenciar de diversas maneiras seu modo de vida, relacionamentos, autoaceitação e aceitação na sociedade”, afirma a pesquisadora. “Conhecendo a tendência de maior expectativa de vida, com o consequente crescimento da população idosa, espera-se que a perda seja cada vez mais chamada ao debate e à atenção, em busca de políticas públicas de prevenção e promoção da saúde, além do enfrentamento das iniquidades em saúde bucal”, finaliza Cristiane Alvez Paz de Carvalho (leia duas perguntas para).
Duas perguntas // Cristiane Alvez Paz de Carvalho
Professor da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
Com o envelhecimento acelerado da população brasileira, você acredita que haverá mais debates sobre a relação entre saúde bucal e mental?
Hoje temos uma elevada prevalência de perdas dentárias, o que é reflexo de um passado extremamente mutilador na odontologia, mas com tendência de declínio na população mais jovem, considerando o aumento das ações de educação e promoção em saúde bucal e a melhoria do acesso aos serviços de saúde para este grupo. Porém, o que preocupa é que para a população idosa a perda dentária ainda será um problema por algum tempo, sendo um dos principais motivos o fato de esse grupo acreditar que a perda dentária faz parte do envelhecimento, como algo natural, mas é não . No ano passado, o Brasil Sorridente foi regulamentado oficialmente pela Lei 14.572/23, que inclui a Política Nacional de Saúde Bucal no Sistema Único de Saúde. Dessa forma, foram estabelecidas diretrizes para as ações odontológicas no SUS, que incluem, além das ações da Atenção Básica, a ampliação dos serviços especializados de saúde bucal, que são de extrema importância para a melhoria das condições de saúde bucal dos indivíduos edêntulos, com o fabricação de próteses dentárias no serviço público de saúde.
A saúde bucal deveria ser uma medida preventiva para a doença de Alzheimer?
Apesar da subjetividade envolvida na perda dentária, suas consequências psicossociais existem e não devem ser banalizadas. Alguns estudos já mencionaram que a redução da capacidade de mastigação pode afetar a área cerebral de cognição (memória, aprendizagem). Nesse sentido, a perda de dentes deve ser um tema neste campo das discussões em saúde pública, uma vez que a ausência de dentes funcionais afeta diretamente a mastigação do indivíduo e impacta diretamente nas relações interpessoais, podendo ser mais um gatilho para o isolamento. social.
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