Para Daniel Guerra, velejador brasileiro que aspirava viajar pelo mundoaquele anúncio de emprego era um sonho que estava prestes a se tornar realidade.
O anúncio dizia que um proprietário de iate britânico estava procurando marinheiros para levar seu barco de Brasil para a Europa – uma das maiores viagens oceânicas do mundo.
Não haveria salário, mas todas as despesas seriam pagas e, mais importante ainda, Daniel acumularia milhas e um pouco da experiência necessária para atingir seu maior objetivo.
“Meu sonho na época era ser capitão de barco e trabalhar em Europa“, lembra Daniel, hoje com 43 anos.
Ao ler o anúncio, publicado na internet por uma agência de recrutamento de marinheiros, ele conta à BBC que se sentiu “super feliz, super feliz”.
E as coisas ficaram ainda melhores quando Daniel e seu colega Rodrigo Dantas, que também havia sido contratado para o cargo através do mesmo anúncio online, conheceram seu novo empregador britânico.
Eles temiam que ele fosse um esnobe rico ou um influenciador se passando por um tipo luxuoso e mandão. Mas nada.
George Saul era uma figura sorridente e amigável, que não gostava de formalidades. Os marinheiros, segundo ele, podiam até chamá-lo pelo apelido: “Fox” (raposa, em português).
“Eu trabalhava em alguns barcos e os proprietários eram velhos, super exigentes, super rudes e falavam comigo de cima a baixo”, conta Rodrigo, 32 anos, à BBC. “Ele [Fox] Ele foi super educado, super sorridente e feliz.”
Fox ainda passou no teste de aprovação dos exigentes pais de Rodrigo, que estavam preocupados com o fato de o filho fazer uma viagem tão longa em um barco de um estranho, e pediram para conhecê-lo pessoalmente. Eles gostaram do jeito britânico.
Eles souberam que a Fox havia trazido o Rich Harvest ao Brasil para reformas e estava procurando tripulação para levar o veleiro de volta à Europa. Além dos novatos, Rodrigo e Daniel, seriam mais dois, incluindo um capitão qualificado.
“[Parecia] uma pessoa acima de qualquer suspeita. Calmo, muito educado”, lembra João, pai de Rodrigo.
Mas, no final das contas, os pais de Rodrigo não foram os únicos que quiseram verificar se tudo estava em ordem a bordo do veleiro Rich Harvest.
No último porto antes de deixar o Brasil, a polícia de Natal passou cerca de seis horas revistando o iate em busca de drogas, com a ajuda de um cão farejador.
No entanto, eles não encontraram nada. Naquele momento, os marinheiros brasileiros pensaram que se tratava apenas de uma verificação de rotina. Já tinham ouvido falar de cocaína plantada em barcos e agora, pelo menos, pensavam que estavam todos seguros.
“Foi minha primeira viagem internacional [marítima]. Imaginei: quando viajamos no aeroporto, também passamos por uma fiscalização, até alguns cães farejadores trabalham no aeroporto também”, conta Rodrigo. “Para mim foi como uma busca de rotina.”
Essas preocupações foram deixadas de lado quando a tripulação embarcou em sua jornada épica no dia 4 de agosto de 2017, com o litoral brasileiro desaparecendo lentamente atrás do veleiro.
Com Daniel e Rodrigo, estavam mais um tripulante, um brasileiro (que a BBC não conseguiu contatar e que, portanto, não será identificado) e um capitão francês.
A Fox, por sua vez, havia retornado à Europa de avião dois dias antes.
“Foi um dia lindo, tempo perfeito, sol”, lembra Daniel, que publicou uma mensagem de agradecimento à Fox em sua página no Facebook. O texto dizia: “A vida nos dá oportunidade e irmãos. Sou muito grato pela chance, Fox.”
Após duas semanas de viagem, o veleiro apresentou problemas no motor, obrigando-os a parar em Cabo Verde, arquipélago próximo da costa de África.
Mas mais uma vez Daniel e Rodrigo conseguiram ver as coisas pelo lado positivo. O país é um paraíso turístico e Fox disse que lhes enviaria dinheiro para desfrutarem das ilhas enquanto eram feitos reparos em uma marina local.
Assim, Daniel não ficou preocupado quando outros policiais chegaram para revistar a embarcação.
“Não encontraram nada no Brasil”, pensou consigo mesmo, “também não encontrarão nada em Cabo Verde”.
Mas os polícias cabo-verdianos foram mais meticulosos do que os seus homólogos brasileiros, utilizando equipamento especial para cortar e expor o interior do barco.
Escondidos sob fundos falsos, encontraram nas ruas da Europa cerca de 1,2 tonelada de cocaína – com valor estimado em £ 100 milhões (mais de R$ 600 milhões) a preço de mercado. Foi uma das maiores operações de apreensão de droga em Cabo Verde.
“Na hora não acreditei. Só pude chamar o Fox de filho da puta”, lembra Daniel. “Fiquei furioso, não conseguia aceitar o que estava acontecendo, sabe?”
Daniel conta que percebeu imediatamente que sua situação era ainda mais delicada porque algumas das drogas estavam escondidas em um fundo falso que havia em seu quarto: “Não é brincadeira. Tem uma tonelada de cocaína embaixo da sua cama, né? (risos)”.
Os brasileiros foram presos e levados para a prisão. Em março de 2018, a tripulação foi a julgamento em Cabo Verde.
Durante o julgamento, eles argumentaram que eram completamente inocentes. Os réus insistiram que nunca tinham ouvido falar da Rich Harvest ou de seu proprietário até responderem ao anúncio de emprego.
Apesar disso, foram condenados a dez anos de prisão cada.
Mas se a quantidade de droga apreendida impressionou, a Polícia Federal brasileira, que também acompanhava o caso, considerou que o “peixe grande” tinha escapado.
Para a polícia brasileira, o chefe da operação foi Fox, cujo veleiro havia sido alvo de informações repassadas pela Agência Nacional do Crime (NCA) do Reino Unido antes de o veleiro deixar o Brasil.
Mas as coisas pareciam – momentaneamente – estar mudando.
Em agosto de 2018, Fox foi preso na Itália e as autoridades brasileiras iniciaram um processo de extradição para que ele pudesse ser enviado ao Brasil para responder às acusações no caso.
Mas a papelada chegou tarde demais e Fox foi solto – para grande frustração do delegado brasileiro André Gonçalves. Gonçalves, que trabalha na Bahia e investigou o caso, temia que o britânico desaparecesse e se tornasse um fugitivo.
O delegado diz que sua equipe manteve a Fox e a Rich Harvest sob vigilância no Brasil por muito tempo. A polícia brasileira acredita que as “reformas” realizadas no barco tiveram como objetivo, em parte, a instalação de compartimentos secretos na embarcação. As autoridades brasileiras acreditam que as drogas foram carregadas antes da contratação dos marinheiros brasileiros.
Gonçalves admite que, num primeiro momento, desconfiou que os quatro marinheiros também estariam envolvidos. “Se uma pessoa está num barco cheio de drogas, você acha que essa pessoa deve ter algo a ver com isso”, diz ele.
Mas acrescenta que, ao investigar seus antecedentes, não encontrou nada que anteriormente os ligasse ao mundo das drogas ou à Fox.
“Quanto mais fundo eu fui, ainda não consegui encontrar uma conexão. Mas, ao mesmo tempo, isso fortaleceu as evidências que tínhamos contra a Fox.”
As declarações de inocência dos marinheiros também foram reforçadas por uma fonte inesperada: o britânico Robert Delbos, o homem que, segundo a polícia brasileira, coordenou a reforma do barco.
Delbos, de 71 anos, foi condenado por tráfico de drogas no Reino Unido em 1988 e cumpriu pena de 12 anos de prisão. Ele tentou contrabandear 1,5 tonelada de maconha para o país.
Antes da partida do Rich Harvest do Brasil, policiais sob as ordens de Gonçalves observaram Delbos supervisionando o início das reformas do veleiro.
Inicialmente, suspeitaram que se tratasse da instalação de compartimentos secretos na embarcação, por isso ajuizaram o processo de extradição ao mesmo tempo em que solicitaram a extradição de Fox.
Delbos passou alguns meses em uma prisão de segurança máxima no Brasil aguardando julgamento, mas alegou que drogas também foram colocadas no barco posteriormente, sem o seu conhecimento.
Ele foi absolvido depois que o tribunal decidiu que não havia provas de que ele sabia dos planos de tráfico de drogas.
Em entrevista à BBC, Delbos afirmou que até os traficantes de drogas têm códigos de ética, e que Fox os violou ao enganar os marinheiros e usá-los como mulas, sem o seu conhecimento, em vez de contratar contrabandistas profissionais.
“Isso é um exagero total”, disse ele. “Isso não pode ser feito.”
“Ele (Fox) era um homem estúpido e ganancioso. Em vez de pagar a tripulação adequadamente e contratar contrabandistas profissionais, ele contratou quatro caras inocentes.”
À medida que cresciam as dúvidas sobre a culpa dos marinheiros, seus familiares iniciaram uma campanha pela sua libertação, que ganhou força e deu visibilidade ao caso no Brasil.
Em 2019, o tribunal de Cabo Verde anulou as condenações e os brasileiros finalmente puderam voltar para casa.
Fox, por sua vez, voltou ao Reino Unido e nunca foi julgado.
Aos 41 anos, Fox mora em uma casa nos subúrbios de Norwich, no leste da Inglaterra, cidade onde cresceu, cursou a faculdade e se tornou um talentoso marinheiro amador, acostumado a explorar o litoral variado do condado de Norfolk. Ele é empresário e proprietário de uma imobiliária.
Em março do ano passado, a Fox fazia parte de uma associação empresarial local. Em suas redes sociais, ele chegou a publicar uma foto posando ao lado do então prefeito da cidade, James Wright (é importante destacar que não há nenhum elemento que sugira que o prefeito tinha conhecimento das acusações contra Fox).
A BBC abordou o empresário quando este chegava a um hotel em Norwich para um pequeno-almoço semanal organizado pela associação empresarial da qual era membro (Assista ao documentário no início desta reportagem).
Fox se recusou a comentar sobre Rich Harvest e o sofrimento causado a velejadores inocentes. Quando questionado sobre as alegações de que era traficante de drogas, ele respondeu: “Não sou”.
Um porta-voz da agência britânica de combate ao crime, NCA, disse que se a polícia brasileira ainda quiser prosseguir com o caso, terá que apresentar um pedido de extradição.
O Ministério da Justiça do Brasil disse que não comenta casos individuais.
Enquanto isso, Rodrigo Dantas e Daniel Guerra tentam reconstruir suas vidas no Brasil, tendo abandonado há muito tempo o sonho de se tornarem capitães de barco.
Rodrigo conta que, ao voltar para casa, teve dificuldade em encontrar trabalho como marinheiro, pois potenciais empregadores continuavam a suspeitar de sua inocência.
Daniel afirma que as suas ambições anteriores de viajar pelo mundo num veleiro “estavam trancadas em Cabo Verde”.
Ele diz que perdeu a capacidade de confiar nas pessoas, qualidade vital para superar as adversidades de uma longa viagem marítima.
Mesmo agora, ele diz que ainda se pergunta quem realmente era Fox – aquele britânico “legal” a quem ele se sentia tão grato, cujo anúncio de emprego virou sua vida de cabeça para baixo.
Daniel diz que “gostaria muito que a justiça fosse feita”, mas não deseja encontrar Fox nunca mais.
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