A pescadora Izabel Serrão esteve a vida toda a poucos passos de um rio.
Primeiro, na canoa onde morava com pai, mãe e irmãos nas águas dos rios Jaú e Negro, no interior do Amazonas.
Depois, em um “beiradão”, a área imediatamente às margens de um rio — até ancorar raízes em uma área alagada de Cacau Pirêra, comunidade da cidade de Iranduba (AM), na região metropolitana de Manaus.
Mas os 38 anos vendo o ascensão e queda naturais das águas amazônicas Não prepararam Izabel para a situação atual de rios secos e estiagem na região.
“É nosso costume ver o rio subir e descer ao longo do ano. Mas este ano, veio muito rápido para secarpegou todo mundo de surpresa”, conta ela à BBC News Brasil.
Izabel agora está “presa” em terra. Com um barco encalhado e outro recolhido, ela não tem como sair para pescar, pois tudo ao seu redor virou areia —onde tem água, a cerca de 2 km de sua casa, virou uma lagoa sem saída.
Segundo o Serviço Geológico do Brasil (SGB), o rio Negro registrou o menor nível da história na região de Manaus nesta sexta-feira (4/10).
O rio atingiu o nível de 12,66 m – o nível mais baixo já observado desde o início do monitoramento, há 122 anos. De acordo com as projeções, os níveis poderão reduzir ainda mais nos próximos dias.
Outros rios amazônicos também atingiram mínimos históricos em 2024, como o Solimões, em Tabatinga (AM), e o Madeira, em Porto Velho (RO).
Em Manaus, a maior cidade da Amazônia, o Solimões se junta ao Rio Negro para formar o Rio Amazonas.
As 62 cidades amazonenses estão em estado de emergência e, segundo o governo do estado, mais de 500 mil pessoas já são afetadas diretamente pela seca.
Sem chuva e sem peixe
Em Cacau Pirêra, cerca de 90 famílias vivem em casas flutuantes, que ficam sobre as águas — ou, em épocas de seca, encalhadas.
Segundo a comunidade local, 90% das famílias sobrevivem da pesca.
Quando há água, Izabel Serrão já está no rio às 4h: “É a boa hora para pescar”.
Na volta, o barco costuma estar cheio de pacus, sardinhas e tambaquis.
Em tempos “normais”, mesmo quando o rio estava baixo, os pescadores da comunidade ainda conseguiam retirar os seus barcos – se não pela porta da frente, pelo menos a poucos metros de distância.
Mas desde 2023, as obras foram totalmente paralisadas.
“Como no ano passado a seca foi muito forte, não deu tempo de o rio encher. Muitos lugares onde a água chegava nem chegava mais”, diz Izabel, apontando para os restingas que circundam a comunidade.
“Eu queria uma explicação para isso. Devolva nossa água para quem está com ela.”
O professor e doutor em Clima e Meio Ambiente Rogério Marinho, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), explica que “naturalmente o rio tem sua função de depositar sedimentos e criar praias em sua história geológica”, mas que a atual frequência e intensidade dos fenômenos não é normal.
“As comunidades ribeirinhas relataram que demorou 20, 30 anos para que uma seca como essa chegasse. Agora, esses eventos estão acontecendo em menos de 10 anos e com mais força”, diz Marinho.
O geógrafo explica que a intensidade da seca, em parte, pode ser explicada pelo fenômeno El Niño, que aquece as águas do Oceano Pacífico, dificultando a formação de chuvas na Amazônia.
Além disso, diz ele, há um aquecimento das águas do Oceano Atlântico, o que também reduz a quantidade de chuvas na região.
Em Cacau Pirêra, quanto mais velho o morador, maior é a sensação de que o que está sendo vivido é inédito.
Na última vez que foi pescar, em meados de setembro, Ronilson Silva, 38 anos de vida e comunidade, lançou seis vezes a rede e pegou apenas 25 peixes —um número bem modesto para os milhares que conseguiu levar para vender no mercado local .
“Estamos todos encalhados, com barcos presos, sem saída. E ainda faltam 30 dias para secar, então acho que será a maior seca da história”, afirma Ronilson.
Além de pescador, ele também é varredor de rios do município, coletando lixo dos moradores dos barcos flutuantes. “Mas agora, eu coleto por via terrestre.”
O ministro do Desenvolvimento Social, Wellington Dias (PT), chegou a anunciar em entrevistas que o governo federal deveria criar um auxílio emergencial para os pescadores afetados pela seca no Norte do Brasil.
O benefício seria uma antecipação do “Seguro Defeso”, normalmente concedido às pessoas que vivem da pesca artesanal no período em que não podem exercer suas atividades devido à chamada “piracema”, quando há o movimento migratório de peixes em direção às nascentes dos rios, para fins de reprodução.
Questionado pela BBC News Brasil sobre valores e quando a medida seria implementada, o ministério repassou a demanda para outra secretaria, a de Integração e Desenvolvimento Regional, que, por sua vez, disse não ter responsabilidade no auxílio aos pescadores.
Até a publicação deste relatório, o Ministério do Desenvolvimento e Assistência Social não forneceu detalhes sobre o auxílio aos profissionais da pesca.
O governo do Amazonas disse que entregou ajuda humanitária às comunidades ribeirinhas de Iranduba, com distribuição de 2.500 cestas básicas.
A Câmara Municipal de Iranduba informou que iniciou a distribuição de cestas básicas e água potável nas “comunidades rurais do município mais afetadas por este fenómeno natural” e “mais isoladas”.
Os moradores de Cacau Pirêra ainda não foram contemplados.
Incêndios
O Amazonas também teve o maior número de incêndios desde que o Inpe começou a coletar dados em 1998.
Segundo o órgão, até o dia 25 de setembro, o Estado do Amazonas registrou 6.695 focos de incêndio neste mês, totalizando 21.930 focos de incêndio no ano.
É um aumento de 66% em relação ao mesmo período do ano passado.
O programa de observação da Terra da União Europeia, Copernicus, também informou recentemente que regiões da Amazónia e do Pantanal enfrentaram as piores épocas de incêndios em 22 anos, incluindo o Amazonas.
O índice, que mede as emissões de carbono decorrentes de incêndios florestais, mostra que, no Amazonas, a poluição ficou significativamente acima da média durante julho, agosto e setembro.
Quando a reportagem da BBC News Brasil esteve em Iranduba, foi possível avistar vários incêndios ao longe. O cheiro de fumaça é constante.
Em Manaus e região metropolitana, tem sido rotina a população acordar com a cidade coberta pela poluição decorrente das queimadas.
No ano de 2023, segundo relatório da empresa IQAir, Manaus era a capital com pior qualidade do ar, em média, do Brasil.
O governo do Amazonas informou que o Corpo de Bombeiros atua desde junho na região de Cacau Pirêra com equipes de prontidão na Operação Céu Limpo.
Do início de junho até quarta-feira (25/09), 18.740 incêndios foram combatidos no Estado, segundo o governo.
Pelo que observa ao seu redor, a pescadora Izabel Serrão acredita que o desmatamento contribuiu para o cenário de 2024.
“Onde não tem árvore o sol aproveita ao máximo, né? Como todos sabem, o sol seca tudo”, diz ela.
Mas, apesar do cenário desanimador, os pescadores de Cacau Pirêra não pensam em sair do lugar de onde vêm ou deixar de fazer o que fazem.
“Pescar é o que eu sei fazer. Preciso que esse rio continue nosso trabalho, continue se sustentando e também fornecendo alimentos [peixe] na mesa das pessoas”, diz Izabel.
Ronilson pensa da mesma forma. “É o que tenho, é onde sei viver. Se você gostasse do lugar onde mora, gostaria de deixá-lo para trás?” pergunta o pescador.
“Eu também”.
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