O nascimento da paranaense Anna Paula Bettencourt Caldeira, em 7 de outubro de 1984, atraiu os holofotes de todo o Brasil para São José dos Pinhais, onde ela nasceu.
Apenas seis anos depois do primeiro fertilização in vitro no mundo, a filha da administradora hospitalar Ilza Maria Caldeira e do urologista José Antônio Caldeira foi o primeiro bebê de proveta do Brasil e de toda a América Latina.
O feito foi realizado pelo médico Milton Nakamura (1933-1998). Antes de Anna Paula, sua equipe já havia realizado cerca de 20 tentativas de fertilização in vitro. O nascimento da menina, com 47 centímetros e 3,35 quilos, completamente saudável, foi um marco na ciência brasileira.
“Minha mãe teve que dar entrevista coletiva ao sair do hospital”, disse Anna Paula, em transmissão ao vivo promovida pela Associação Brasileira de Reprodução Assistida (SBRA), em 2021.
Ao lado da filha na mesma entrevista, Ilza disse que durante todo o processo não sabia que se tratava de um caso pioneiro. “Na minha cabeça já nasceram muitos [com a técnica]mas ninguém queria estar na imprensa. Eu nunca perguntei [aos médicos] qual era a estatística. Eu não sabia que era o meu primeiro ou por que eles estavam tão preocupados com a minha gravidez.”
Segundo a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), hoje existem 192 Centros de Reprodução Humana Assistida no Brasil. Os dados indicam que é um setor em crescimento. O relatório mais recente da Anvisa aponta que em 2023 foram realizados 56 mil ciclos de fertilização in vitro no país, 10% a mais que no ano anterior.
Anna Paula se orgulha de ter sido um marco. “Na verdade, sou mais uma celebridade no mundo científico. Levo uma vida normal. Nada da minha história influencia o dia a dia”, comentou ela, na live. “Sei o marco que isso é na medicina, especial, importante, e o que representa para as mulheres que não podem ter filhos. Minha mãe e meu pai sempre trataram isso com naturalidade em casa”, disse ela na entrevista de 2021.
A BBC News Brasil entrou em contato com Anna Paula e seus pais por meio de redes sociais, e-mails e duas associações médicas. Ele não recebeu resposta. Três fontes disseram que mesmo depois de ter dado inúmeras entrevistas ao longo da vida, ela decidiu que não queria falar novamente com a imprensa.
“Até os 18 anos, eu era muito [procurada pela imprensa]”, disse Anna Paula, em live. “Pelo menos duas entrevistas por ano.” Ilza contou que a menina era uma criança tão acostumada a aparecer na mídia que achava que as revistas que a família colecionava eram seus álbuns de fotos.
Em seu Instagram há diversas postagens de jornais e revistas antigas em que ela foi protagonista. A biografia de seu perfil elogia o fato de ela ser o “primeiro bebê de proveta da América Latina”, completo com hashtags referentes à fertilização in vitro. Ela não posta nada lá desde 2021.
Um marco na medicina brasileira
Para a medicina, há muito o que comemorar. “O nascimento de Anna Paula Caldeira no Brasil marcou uma época de gerações. O primeiro caso de fertilização in vitro já ocorreu no exterior [Louise Brown nasceu na Inglaterra em julho de 1978]mas ainda faltava o brasileiro dar o primeiro passo”, afirma o médico Nathan Ichikawa, especialista em reprodução humana e sócio do Feliccità Instituto de Fertilidade, à BBC News Brasil.
“Depois desse sucesso tivemos a oportunidade de ampliar o atendimento aos pacientes que precisavam desse tratamento sem precisar atravessar o oceano para o sonho se tornar realidade. A medicina reprodutiva evoluiu muito desde então e hoje o Brasil é considerado referência”, completa.
Quando Louise Brown nasceu, a médica Maria do Carmo Borges de Souza havia se formado há apenas dois anos. Ex-presidente da SBRA, hoje é diretora do Centro de Reprodução Humana Fertipraxis.
“Foi um choque naquela hora, um choque. Sentia-se que a ciência estava assumindo um lugar que não era o seu, que os médicos não eram deuses”, lembra ela, em depoimento à BBC News Brasil. “Não estamos, mas teve um impacto enorme no mundo e, obviamente, também no Brasil.”
Souza afirma que está “muito satisfeito e muito orgulhoso” de fazer parte desta história. “A reprodução assistida mudou minha vida porque é meu trabalho diário. Estou muito satisfeito e vejo com muita alegria o que surgiu e o que virá dessa técnica.”
Junto com a evolução veio a mudança na nomenclatura. A terminologia dos bebês de proveta deu lugar ao uso da fertilização in vitro. “[Antes] Para a realização das técnicas iniciais foram utilizados tubos de ensaio, também conhecidos como tubos de ensaio”, explica Ichikawa. “Hoje o termo está em declínio devido ao avanço das próprias técnicas laboratoriais.”
“A fertilização in vitro é uma técnica em que deixamos o óvulo em uma placa com meio de cultura e depois, uma vez liberado, o espermatozóide fecunda espontaneamente”, detalha. “Atualmente utilizamos cada vez mais a injeção intracitoplasmática de espermatozóides, fertilizando cada óvulo individualmente. Ou seja: cada espermatozóide fecunda o óvulo para obter o embrião.”
“Copo de teste”
Na vida de Anna Paula, o termo tubo de ensaio pegou. Tanto que, em entrevista concedida ao jornal Folha de S. Paulo em 1997, ela contou que os colegas da escola onde estudava o 7º ano, em Curitiba, a apelidaram de “menininha”. “No início, quando mudei para a escola onde estou hoje, as pessoas faziam algumas perguntas e brincavam. A televisão foi lá fazer uma história e a história ficou mais popular. Às vezes, tinha gente que me incomodava”, relatou.
“Eu era tubo de ensaio, tubo de ensaio, Anna tubo de ensaio. Hoje isso se chamaria bullying”, completou Anna Paula, na live de 2021. “No início, fiquei um pouco triste. Mas então… isso faz parte da minha vida, não posso reclamar.”
Em sua casa o tema não era tabu. “Nunca foi apontado como diferença, sempre com naturalidade”, disse. Os pais foram explicando aos poucos à filha como ela havia sido gerada, usando uma linguagem metafórica dependendo da idade, dizendo coisas como “um médico ajudou a colocar a sementinha do papai junto com a sementinha da mamãe fora da barriga e depois colocou dentro da barriga”. A história se tornou pública entre amigos quando ela tinha 10 ou 11 anos e um colega de classe levou para a escola uma edição brasileira do Guinness Book of Records em que o fato histórico foi registrado.
Para o médico Souza, o termo bebê de proveta era pejorativo. “Não se fala mais nisso porque era um nome negativo, como se fosse algo que está no laboratório, fora da vida. E o exercício da reprodução assistida é o exercício da vida, a valorização da vida.”
“Durante muitos anos o termo bebê de proveta foi usado como sinônimo de fertilização in vitro. Quando ficou claro que se trata de uma técnica, o uso mais adequado do termo fertilização in vitro acabou se tornando mais utilizado. E usado de forma mais correta”, explica o médico Alvaro Pigatto Ceschin, presidente da SBRA, à BBC News Brasil.
Anna Paula defende que aqueles que nascem por fertilização in vitro são “bebês extremamente desejados”. “Vejo que é o amor que move todas essas montanhas: o amor do casal que quer filhos, o amor dos médicos pela sua profissão”, disse. “Acredite no amor, nas histórias que inspiram, na esperança de ter uma história de amor realizada.”
sexta filha
A mãe de Anna Paula já tinha cinco filhos quando decidiu procurar tratamento. Na época, aos 36 anos, ela queria ter um filho com o segundo marido, o médico José Antônio, mas como havia tido uma inflamação após o parto anterior, que comprometeu suas trompas, não conseguiu voltar a ter uma gravidez natural. “Quando procurei minha ginecologista e ela disse que ‘para você, só se for bebê de proveta’, olhei para ela assustado”, disse ele.
Ela então procurou o médico Nakamura, em São Paulo. Ele procurou aplicar a mesma técnica que, anos atrás, na Inglaterra, permitiu o nascimento da menina Brown. “Foram vários meses de viagem a São Paulo para acompanhamentos”, afirmou Anna Paula, em comunicado publicado há 10 anos na Folha de S. Paulo.
Cinco mulheres se voluntariaram para experimentar o procedimento inovador. “Com minha mãe foi a primeira tentativa”, disse a pioneira.
Anna Paula lembrou-se do médico com carinho. Ele disse que o chamava de tio Naka e que sempre lhe mandava presentes e era frequentador assíduo de suas festas de aniversário. “Ele me inseriu na vida dele”, relatou.
Na live da SBRA, os dois comentaram o andamento do tratamento. “Minha mãe ficava com a barriga aberta todas as vezes para retirar os óvulos”, disse Anna Paula. Na época, esse era o procedimento, feito por laparoscopia. Hoje, sua aspiração é realizada com agulha inserida por via vaginal, guiada por ultrassom. Dura menos de 15 minutos e o paciente vai para casa no mesmo dia.
“Atualmente coletamos os óvulos com uma técnica menos invasiva. Com a ajuda de um ultrassom transvaginal, o ovário é puncionado e os óvulos são coletados. Fertilizamos e cultivamos os embriões até a fase de blastocisto e depois transferimos o embrião, novamente por via vaginal até o endométrio”, detalha o médico Ichikawa.
“A técnica evoluiu”, concorda o médico Souza. “Os primeiros laboratórios, embora sofisticados para a época, estão muito longe do que é hoje um laboratório de reprodução assistida. Isso permite que a técnica tenha avançado muito. Muitos casos que não conseguimos tratar, hoje chegam a um bebê dos sonhos.”
Ceschin vê a maior eficácia da técnica como um legado de evolução ao longo destes 40 anos. “Existem novos medicamentos, formas de estimular a ovulação…”, afirma, explicando também que o método de retirada de óvulos e implantação de embriões é menos invasivo e tem maiores chances de sucesso. “Todas as alternativas foram melhoradas”, comemora. “É uma conquista.”
O médico explica, por exemplo, que os atuais meios de cultivo conseguem “um embrião mais viável para transferência, melhorando tanto o prognóstico da gravidez como o tempo de espera para viabilizar uma gravidez”.
Ele acredita que com as novas tecnologias e o uso da inteligência artificial, há um cenário de melhoria iminente. “Surgiram muitos avanços, incluindo o potencial de utilização da inteligência artificial como ferramenta para selecionar óvulos e espermatozoides. São ferramentas que os médicos podem acessar para otimizar o processo de reprodução assistida e, assim, aumentar o prognóstico da gravidez”, afirma Ceschin.
Formada em nutrição em 2005, Anna Paula mudou-se para os Estados Unidos em 2015, conforme contou em live. Lá ela trabalhava com suplementos alimentares, “sempre na área da saúde e do bem-estar”.
Na transmissão ao vivo de quase 1 hora de duração pela SBRA, ela destacou que “é muito bonito ver e se envolver com a evolução da medicina”.
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