Um forte estrondo quebra o silêncio por volta das 20h de uma terça-feira na cidade de Valença, na Bahia. O barulho é acompanhado por uma sequência de gritos desesperados de socorro.
Os vizinhos da rua sem saída aparecem imediatamente para responder aos pedidos de ajuda feitos por Rosália Maria Negrão Pita. Seu então namorado, José Antônio Silva Braga, conhecido como Tony Veículos, de 35 anos, acabara de morrer em decorrência de um tiro no coração causado por revólver calibre 38.
A arma usado no crime foi encontrado pela polícia no banco do passageiro, no carro onde foi encontrado morto.
Foi o início de uma saga que durou 12 anos até que ela conseguiu ser absolvida há duas semanas, no dia 25 de setembro deste ano. O Tribunal do Júri decidiu por unanimidade (4 votos a 0) que seu então namorado tirou a própria vida e que ela não é uma assassina.
O detalhe mais surpreendente é que, entre os advogados de defesa de Rosália, estava a própria filha, Camila Pita, de 26 anos. A jovem foi para a faculdade por causa do caso que afetou sua família. Ela estudou por mais de uma década e se formou em direito para fazer parte da equipe de defesa da mãe.
A BBC News ouviu Camila, o Ministério Público baiano e especialistas para entender o caso.
A noite que durou 12 anos
A cidade de Valença é parada de muitos turistas por ser o principal ponto de acesso à Ilha de Tinharé, onde fica a cidade de Morro de São Paulo — um paraíso de praias de águas mornas e cristalinas ao sul de Salvador.
Em entrevista à BBC News Brasil, a advogada Camila Pita conta que tinha 14 anos quando o namorado da mãe, segundo a versão da defesa, se matou no carro e, a partir daí, iniciou uma saga de 12 anos até ser declarada inocente.
Camila diz que não teve um pai “muito presente” e foi criada pela mãe e pela avó materna.
Considerada pequena, a cidade que tem 85 mil habitantes, segundo o último censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), se mobilizou em torno do caso. Em publicações sobre o assunto apuradas pela reportagem no Instagram, alguns moradores do município acreditam que Tony Veículos foi assassinado pela namorada, enquanto outros defendem que ocorreu suicídio.
A advogada Camila Pita diz que não se lembra exatamente, mas tinha 7 ou 8 anos quando a mãe conheceu Tony.
“Eles tiveram um relacionamento um tanto conturbado, com muitas idas e vindas, mas sem se casar. Eles namoraram cerca de 7 anos até acontecer o incidente”, conta Camila.
O advogado conta que cerca de 15 dias antes da morte de Tony, o casal havia encerrado o relacionamento. Ele estava tentando voltar a ficar juntos, nas palavras de Camila, e a mãe dela negou.
“Em uma discussão, Tony ameaçou que se mataria se ela não voltasse com ele. Ele saiu de casa, disse que iria resolver a situação e entrou no carro dizendo que faria uma besteira”, conta Camila.
O advogado diz que Tony já havia feito isso antes. Nessas ocasiões, ele teria apontado o revólver para o peito e a cabeça, repetidamente, por diversas vezes, enquanto ameaçava puxar o gatilho.
Na noite em que morreu, Rosália terá insistido várias vezes para que ele se acalmasse e desistisse da ideia. Depois que Tony entrou no veículo, ela ainda disse que entraria no carro com ele. Antes, ele teria pedido para pegar a sacola que havia ficado dentro de sua casa.
Em seu depoimento, ela afirmou que assim que se virou para procurar o item pessoal ouviu um tiro. Quando ele se vira novamente, Tony está ensanguentado e sem vida.
Ela diz que não sabe se foi acidental ou intencional, pois estava de costas no momento do tiroteio. A reação imediata foi gritar e pedir ajuda aos vizinhos.
Testemunhas chegaram ao local logo após o tiroteio, conforme afirmaram em depoimento.
A família de Tony não acredita na versão de Rosália e suspeita que ela tenha sido a autora do tiro fatal.
Em comunicado distribuído à imprensa local, a família disse antes do julgamento:
“Pedimos à sociedade e à imprensa que se juntem a nós neste momento crucial, e às autoridades que ouçam o nosso apelo, para que, juntos, possamos garantir que os responsáveis paguem pelo que fizeram e que Tony, um homem de tantos sonhos e amores, receba o respeito que merece”, diz trecho da nota
A reportagem não conseguiu entrar em contato com a família de Tony até a publicação desta reportagem.
Tribunal do Júri
Para a advogada Camila, a perícia e as investigações já deram indícios suficientes para inocentar a mãe e evitar estresse para toda a família.
A perícia coletou todas as impressões digitais na cena do crime. Nenhum dos recolhidos encontrados na arma era de Rosália.
A defesa afirma que não havia indícios de que a então namorada de Tony tivesse entrado no carro com ele porque apenas a porta do motorista estava aberta. Ela também não teria disparado de fora, pois não havia marcas de bala no veículo.
Peritos forenses indicaram que o tiro foi disparado dentro do veículo. A defesa afirma que uma mulher relativamente baixa, de 1,50 metros de altura, não seria capaz de atirar em um homem de 1,80 metros de altura e matá-lo com apenas um tiro.
A morte de Tony foi notícia em jornais e portais de notícias locais e comoveu a população de Valença. O menino era bastante conhecido por seu trabalho no ramo de revenda de veículos e por ser pré-candidato a vereador.
A fase do inquérito policial, com inquérito, depoimentos e laudos periciais, durou cerca de um ano.
Para Camila, o caso deveria ter sido encerrado imediatamente após o fim do inquérito policial, com a absolvição da mãe e sem necessidade de júri.
“Infelizmente, a Justiça às vezes é cega, principalmente quando se trata de Tribunais do Júri. Ou seja, entendem que tudo tem que existir no Júri”, afirma.
Procurado pela reportagem, o Ministério Público da Bahia informou em nota que, em julho de 2013, Rosália foi acusada de homicídio com base no inquérito policial.
Segundo a promotoria, as investigações apresentaram “indícios de autoria e materialidade dos fatos criminosos, com testemunhas e laudos periciais que afastaram a teoria de suicídio alegada pelo réu”.
O Ministério Público afirmou ainda que esta acusação foi avaliada pelo Tribunal, que recebeu a denúncia.
“(O Tribunal) considerou que a peça continha os elementos necessários à instauração do processo penal e à investigação criminal. O Tribunal considerou ainda que existiam indícios de autoria e materialidade suficientes para determinar o julgamento popular de Rosália Maria, razão pela qual declarou o arguido culpado de homicídio”, refere a nota.
Em 2020, o Tribunal de Justiça negou o recurso de Rosália Maria e determinou que o seu julgamento fosse por júri popular.
“O Ministério Público da Bahia reafirma que cumpriu zelosamente o seu dever constitucional e em todas as etapas do processo agiu com respeito à lei e de acordo com as provas do caso”, informou o Ministério Público.
Faculdade para defender a mãe
Quando Tony morreu, Camila tinha 14 anos. Ela estava no ensino médio e começando a escolher uma profissão.
Ela conta que tudo em sua família passou a girar em torno desse processo e até influenciou na escolha da profissão.
“Comecei a estudar bastante o processo para entendê-lo. Queria saber o que estava acontecendo, como era o processo criminal e comecei a me interessar por direito”, conta Camila ao repórter.
Ela conta que prestou vestibular e começou a estudar no campus da Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em Valença.
“Quando comecei a faculdade, me apaixonei ainda mais pelo julgamento com júri depois de assistir ao primeiro. Eu falei: ‘Vou ter que aprender a fazer isso’, diz ele.
Pela legislação brasileira, o julgamento de crimes como homicídios dolosos (quando há intenção de matar) é realizado por um órgão composto por um juiz de carreira e jurados escolhidos por sorteio entre os cidadãos locais. Este órgão é denominado tribunal do júri.
A participação como advogada de defesa em um julgamento com júri da própria mãe foi a oitava em três anos de profissão. A intenção de Camila era atuar no maior número possível de processos no tribunal do júri para ganhar experiência para defender a própria mãe.
“Logo quando entrei (na faculdade), não sabia se teria tempo (de defender minha mãe). Mas dois anos se passaram e eu já estava conversando com os advogados dela e eles me disseram que eu me formaria na hora certa. E deu certo”, diz em tom de orgulho.
A frase
Doze anos após a morte de Tony, sete pessoas ouviram a defesa, Rosália e a promotora Rita de Cássia Pires Bezerra Cavalcanti no fórum Gonçalo Porto de Sousa para decidir o futuro do réu.
Um dos pontos mais questionados pela família ao longo desses 12 anos e pelo Ministério Público durante o julgamento, segundo Camila, são os exames que identificariam a presença de pólvora nas roupas e na pele tanto da vítima quanto de Rosália. O resultado foi inconclusivo para ambos.
“A única base que usaram foi que um teste de pólvora foi realizado nas mãos de Tony e não havia pólvora em suas mãos. Mas é um exame que o próprio laudo vem com mais de dez itens que podem levar a um falso negativo. Esse é um exame que a polícia chegou a suspender em alguns estados por um período”, afirma.
Feitas todas as considerações, às 0h50 do dia 25 de setembro de 2024, Rosália foi considerada inocente por quatro votos a zero. Os três últimos jurados nem precisaram ser ouvidos porque o júri já havia formado maioria.
“Havia muitas emoções porque é claro que eu tinha medo de que as coisas dessem errado. Foi o maior júri de todos os tempos aqui na cidade. O fórum estava lotado, com muitas pessoas em pé. Pelo menos 50 pessoas usavam t-shirts com a inscrição Rosália Inocente. Era muita notícia, era o assunto da cidade, então havia muito nervosismo porque eu tinha medo que ela fosse presa”, conta Camila.
Ela disse ainda que aos poucos foi se acalmando, pois havia estudado muito o processo e estava confiante na inocência da mãe. Depois do resultado, a emoção.
“Na época eu chorei muito. Eu não conseguia parar de chorar. Minha mãe já ficou muito chocada porque passou todo o julgamento muito apreensiva. Ela teve que reviver o que foi um grande trauma para ela”, diz ele.
“A sensação é de alívio para nós. Foi um ponto de viragem e, porque consegui fazê-lo tão bem, poderei usar isto como uma força motriz na minha vida.”
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