Até 20% das pessoas que tiveram Covid-19 sofrem consequências físicas e neurológicas que persistem por muito tempo após a infecção, como taquicardia, fadiga, perda de memória, desorientação e ansiedade. Estudos no cérebro de indivíduos que morreram em decorrência da doença já apontaram diversos danos ao órgão, mas agora, pesquisas com pacientes vivos identificaram o que pode estar por trás desses efeitos: uma inflamação crônica no centro de controle cerebral.
No estudo, cientistas das universidades de Cambridge e Oxford, no Reino Unido, observaram, pela primeira vez, detalhes dos danos causados pelo Sars-CoV-2 ao cérebro. Para isso, eles usaram potentes aparelhos de ressonância magnética conhecidos como scanners 7-Tesla, ou 7T, capazes de fornecer resolução de imagens 10 vezes maior, em comparação com aparelhos disponíveis na maioria das clínicas.
Os pesquisadores examinaram os cérebros de 30 pessoas hospitalizadas com Covid grave no início da pandemia, quando ainda não havia vacinas. Eles descobriram que a infecção por coronavírus inflama e danifica a região do tronco cerebral associada à falta de ar, fadiga e ansiedade. O estudo foi publicado na revista Cérebro e, segundo os autores, seus resultados ajudarão a compreender os efeitos a longo prazo do Sars-CoV-2, além de aumentar as chances de possíveis terapias.
Função
O tronco cerebral, que conecta o cérebro à medula espinhal, é o centro de controle de muitas funções básicas da vida, bem como dos reflexos. Aglomerados de células nervosas da região, conhecidos como núcleos, são responsáveis por regular e processar funções essenciais do corpo, como respirar, sentir dor, manter a frequência cardíaca e a pressão arterial.
“As coisas que acontecem dentro e ao redor do tronco cerebral são vitais para a qualidade de vida, mas era impossível escanear a inflamação dos núcleos desta região em pessoas vivas, devido ao seu tamanho minúsculo e posição difícil”, explica, em nota , Catarina Rua, do Departamento de Neurociências Clínicas da Universidade de Cambridge, e primeira autora da investigação. “Normalmente, os cientistas só conseguem dar uma boa olhada no tronco cerebral durante exames post-mortem”.
O neurocientista James Rowe, que co-liderou a pesquisa, define o tronco cerebral como “a caixa de junção crítica entre o nosso eu consciente e o que está acontecendo em nossos corpos”. “A capacidade de ver e compreender como o tronco cerebral muda em resposta à Covid-19 ajudará a explicar e tratar os efeitos a longo prazo de forma mais eficaz”, diz ele.
Rowe lembra que, no início da pandemia, antes de existirem vacinas eficazes, estudos post-mortem de pacientes que sofreram infeções graves por Covid-19 mostraram alterações nos troncos cerebrais, incluindo inflamação. Muitos deles foram considerados como resultado de uma resposta imune pós-infecção, e não da invasão direta do vírus no cérebro.
“As pessoas que estavam muito doentes no início da pandemia apresentavam alterações cerebrais duradouras, provavelmente causadas por uma resposta imunitária ao vírus. Mas medir esta resposta imunitária é difícil em pessoas vivas”, observa Rowe. “As máquinas normais de ressonância magnética do tipo hospitalar não conseguem ver o interior do cérebro com o tipo de detalhes químicos e físicos de que precisamos”.
Porém, com o 7T é possível obter o detalhamento necessário. “As células imunológicas ativas interferem no campo magnético ultra-alto, por isso somos capazes de detectar como elas estão se comportando”. Na Universidade de Cambridge, os pesquisadores conseguiram escanear os cérebros dos pacientes mais doentes e infecciosos no início da pandemia.
Respirando
Segundo os autores do estudo, os sintomas da Covid longa podem ser, em parte, explicados por danos nos principais núcleos do tronco cerebral, incluindo regiões responsáveis pelo controle da respiração. “O facto de observarmos anomalias nas partes do cérebro associadas à respiração sugere fortemente que os sintomas duradouros são um efeito da inflamação no tronco cerebral após a infecção por Covid-19”, diz Rowe. “Esses efeitos são independentes da idade e do sexo e são mais pronunciados naqueles que tiveram Covid-19 grave”.
Além dos efeitos físicos adversos da Covid-19, os scanners 7T forneceram evidências de alguns dos sintomas psiquiátricos da doença. Além da falta de ar, o tronco cerebral controla a fadiga e a ansiedade. “A saúde mental está intimamente ligada à saúde do cérebro, e os pacientes com a resposta imunológica mais forte também apresentaram níveis mais elevados de depressão e ansiedade”, ressalta Rowe. “As alterações no tronco cerebral causadas pela infecção por Covid-19 também podem levar a maus resultados de saúde mental, devido à estreita ligação entre a saúde física e mental”.
Lisa Sanders, psiquiatra da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, destaca que, por enquanto, o tratamento das sequelas psiquiátricas da Covid longa é o mesmo destinado a pessoas com transtornos mentais que não tiveram a infecção. “Talvez uma melhor compreensão do que causa a depressão e a ansiedade na Covid prolongada nos forneça outros tratamentos mais direcionados”, acredita Sanders, que não esteve envolvido no estudo britânico.
Três perguntas para Paul Mullins, professor de neuroimagem na Universidade de Bangor, no País de Gales
O que a pesquisa acrescenta ao que já se sabia sobre os danos cerebrais causados pela Covid-19?
A descoberta aumenta o nosso conhecimento sobre quais regiões do cérebro a infecção afeta, mostrando alterações em regiões envolvidas na respiração e outras funções autonômicas. Embora o estudo não prove de forma conclusiva as causas da Covid prolongada, ele aponta o dedo para um possível suspeito de alguns dos sintomas persistentes da doença.
Quais são as implicações clínicas?
A pesquisa mostra que pode haver um aumento na deposição de ferro nas regiões do tronco cerebral – o que provavelmente reflete inflamação. No entanto, a técnica não é capaz de determinar se se trata de uma inflamação contínua ou o resultado de uma inflamação passada, pelo que é provável que seja demasiado cedo para concluir que uma inflamação persistente está presente no tronco cerebral e que esta é a causa da Covid longa. apenas com base neste conjunto de dados.
Os resultados poderiam levar a novos tratamentos?
Ainda não está claro se os resultados contribuem muito em termos de possíveis tratamentos para a Covid prolongada, uma vez que ela ocorra. Mas talvez o trabalho aponte para a necessidade de reduzir as respostas inflamatórias durante a infecção e a resposta inicial à infecção.
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