A regulação das big techs, as gigantes globais da tecnologia, enfrenta uma série de desafios no Brasil. Na semana passada, o Ministério da Fazenda apresentou estudo com proposta de norma com o objetivo de prevenir práticas predatórias de grandes plataformas, por meio de alterações na Lei de Defesa da Concorrência. Especialistas afirmam que a medida é apenas o primeiro passo e que há consenso de que o setor também precisa ser bem regulamentado, principalmente em questões como controle de conteúdo e tributação.
O tema é delicado e enfrenta forte resistência de gigantes do mercado, como Google, Amazon, Apple e Meta (dona do Facebook, Instagram e WhatsApp). “São vários desafios, mas alguns bem específicos das big techs têm a ver com a dificuldade de trazer respostas rápidas às tecnologias inovadoras e a resistência da própria população, que está sujeita aos impactos negativos de uma atividade não regulamentada”, aponta Luiz Fernando Plastino, do Barcellos Tucunduva Advogados.
Segundo o especialista, há também casos em que o próprio Estado depende de tecnologias privadas para operar em alguns sectores, o que torna especialmente sensível a necessidade de regulação. Um estudo recente apresentado pela Oxfam demonstrou a dimensão e a complexidade deste mercado. A pesquisa mostrou que as grandes tecnologias dominam os mercados, 75% dos gastos globais com publicidade online são pagos à Meta, Alphabet e Amazon, e mais de 90% da pesquisa online global é feita através do Google.
A principal discussão sobre o monopólio das grandes tecnologias é a regulamentação de uma lei antitruste, que visa impedir que empresas dominantes no mercado barram a concorrência. Inicialmente, a equipe econômica propôs estabelecer regras adicionais para empresas de maior porte, sob o comando do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade), que seria o órgão regulador. Atualmente, a instituição de defesa da concorrência do país atua quando identifica um caso que prejudica o equilíbrio dos mercados.
“A principal razão para a regulamentação é reduzir o poder das empresas sobre os utilizadores e garantir que estas sejam responsabilizadas por quaisquer impactos negativos da sua actividade nas pessoas em geral. Qualquer actividade, quando é demasiado grande, tem consequências para a sociedade e para as necessidades dos cidadãos. regras para evitar descontrole”, destaca Plastino.
A questão dos monopólios tecnológicos é discutida por especialistas desde as últimas décadas do século XX, mas os sinais específicos para a regulação das big techs só começaram em 2021. A União Europeia é referência na regulação de gigantes da tecnologia, outros países também são se destacam com diferentes padrões, como Canadá e Índia. Nos Estados Unidos, estão a ser investigadas práticas monopolísticas e o parlamento está a discutir legislação antitrust.
Para o advogado, começar por atacar a concorrência é uma decisão “certa”. Ele afirma que o Brasil “já teve papel pioneiro na discussão de regras para a internet, mas ainda está engatinhando em termos de regulamentação específica de plataformas”. “É preciso retomar esse papel e inovar em diversas áreas para chegar a um quadro consistente e eficaz”, acrescenta Plastino.
Tributação
A Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) defende que as grandes multinacionais, incluindo as big techs, paguem um imposto mínimo de 15% sobre os lucros nas jurisdições em que operam. Com isso, a organização pretende cortar incentivos para empresas que remetem lucros para países onde usufruam de vantagens fiscais.
Segundo cálculos da OCDE, um imposto global mínimo, que já está em vigor em alguns países, como Coreia do Sul e Japão, poderia arrecadar até US$ 200 bilhões (R$ 1,1 trilhão) em receitas adicionais por ano. O Brasil ainda não sinalizou se seguirá esse ritmo, nem quando poderá ser implementado.
Para Marcelo Costa Censoni Filho, advogado tributarista e CEO da Censoni Tecnologia Fiscal e Tributária, é importante uma abordagem de tributação que “evite a erosão da base tributária sem comprometer a inovação”. “Participar em acordos multilaterais para estabelecer uma base tributária comum é essencial para evitar a erosão da base tributária e garantir que as big techs paguem uma parte justa dos impostos nos países onde realmente geram valor económico”, destaca o especialista.
A receita potencial da tributação das big techs no Brasil dependerá de vários fatores, incluindo a estrutura tributária e as alíquotas estabelecidas. “Estudos internacionais indicam que os impostos sobre serviços digitais, com alíquotas em torno de 3% sobre a receita, podem gerar receitas substanciais. No caso do Brasil, considerando o tamanho do nosso mercado digital, a receita pode chegar a bilhões de reais anualmente. É necessário um estudo das atividades económicas específicas destas empresas e uma análise da capacidade de implementação e monitorização do novo regime fiscal”, avalia.
Controlar
A disseminação de informações falsas, discursos de ódio e conteúdos racistas ou nazis nas redes sociais é uma questão que tem mobilizado governos e reguladores. Para o especialista em Direito Digital Marcelo Cárgano, coordenador do Japan Desk do Abe Advogados, o controle de conteúdo nas plataformas digitais é o maior impasse. “Há uma grande preocupação com o que pode ser publicado nessas plataformas e quem deve ser responsabilizado por conteúdos falsos ou ofensivos”, explica.
Cárgano cita o caso do X (antigo Twitter), que retomou recentemente as operações no Brasil, como exemplo de debate sobre controle de conteúdo. “Ainda é preciso acompanhar como o Brasil vai lidar com essa questão regulatória, principalmente no que diz respeito à liberdade de expressão e ao combate a conteúdos nocivos”, comenta.
No ano passado, a questão da regulamentação das big techs ganhou força no Brasil com a tramitação do Projeto de Lei 2.630/2020, o chamado PL das Fake News. A proposta, que visava estabelecer novas regras para moderação de conteúdo nas plataformas digitais, também buscava responsabilizar as empresas pelos conteúdos ilícitos compartilhados pelos usuários.
Inspirado na Lei dos Serviços Digitais da União Europeia, o PL introduziu o “dever de cuidado”, uma obrigação de prevenir e mitigar crimes, como racismo e terrorismo, exigindo que as plataformas atuem de forma mais diligente.
A polêmica em torno do projeto se intensificou após o adiamento da votação do PL na Câmara dos Deputados, enquanto o Supremo Tribunal Federal (STF) se preparava para julgar ações que questionavam a constitucionalidade do Marco Civil da Internet. O artigo 19, por exemplo, isentava as plataformas de responsabilidade por conteúdos gerados por terceiros, a menos que uma decisão judicial ordenasse a remoção, regra que poderia ser alterada por nova legislação.
Esse cenário colocou grandes empresas de tecnologia, como Google e Meta, em posição de resistência, alegando que a aprovação da proposta resultaria em uma avalanche de ações judiciais e comprometeria a liberdade de expressão. Ao mesmo tempo, o STF se preparava para julgar casos que discutiam a suspensão de aplicativos, como WhatsApp e Telegram, por descumprimento de ordens judiciais de quebra de sigilo em investigações criminais. O Tribunal também avaliaria a validade do artigo 19, que limitava a responsabilidade das plataformas.
As big techs afirmaram que a regulamentação proposta transformou as plataformas em uma espécie de “polícia da internet”, transferindo para elas uma função que tradicionalmente pertencia ao Judiciário. Isto significaria que teriam de decidir o que é “ilegal” sem uma decisão judicial, o que consideravam inadequado e potencialmente prejudicial.
Além disso, tanto o Meta como o Telegram alertaram para o risco de censura e vigilância permanente que o projeto poderia criar, comparando-o a sistemas de controlo em regimes não democráticos. Meta argumentou que o PL transferiu o poder de moderação para empresas privadas, função que deveria ser de responsabilidade do Judiciário.
Liberdade
Outro ponto importante levantado foi o impacto na liberdade de expressão. Meta e Google destacaram que a possibilidade de uma “enxurrada de ações judiciais” faria com que as plataformas agissem menos na moderação de conteúdo, tornando o ambiente online mais desprotegido.
Além disso, quando se trata de criptografia e privacidade, as empresas defenderam a manutenção da tecnologia de criptografia ponta a ponta, argumentando que isso era essencial para proteger a privacidade dos usuários. Enfatizaram que “a colaboração com as autoridades nas investigações criminais não deve comprometer a privacidade geral dos cidadãos”.
No que diz respeito à moderação de conteúdo, o Google e outras empresas reconheceram a dificuldade de lidar com a grande quantidade de informações controversas e complexas, mesmo com boas políticas de moderação. A remoção de conteúdo sem decisão judicial foi vista como uma violação da liberdade de expressão.
Por fim, as big techs defenderam a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, que limitava a responsabilidade das plataformas sobre conteúdos gerados por terceiros, destacando que elas só poderiam ser responsabilizadas após decisão judicial.
*Estagiário sob supervisão de Rosana Hessel
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