Sistema anti-inundação, salas de bombas, desassoreamento, cidade da esponja…
Até maio passado, palavras como essas deixavam a maioria dos porto-alegrenses atônitos.
Mas as enchentes que afetaram fortemente a capital gaúcha e gaúcha naquele mês provocaram uma mudança no cotidiano e no vocabulário da população, ávida por soluções contra possíveis novas enchentes.
A catástrofe de maio afetou mais de 160 mil pessoas, 39 mil edifícios, 5.400 indústrias, 160 estabelecimentos de ensino e 31 estabelecimentos de saúde na cidade.
Poucos meses depois, foi a vez do tema dominar as campanhas dos candidatos a prefeito e vereador no eleições municipais.
Nó segundo turno da disputa pela Prefeitura, a pauta tem oposição de Sebastião Melo (MDB), candidato à reeleição, e Maria do Rosário (PT).
Um dos principais pontos de divergência diz respeito ao chamado Sistema de Proteção contra Inundações, concluído na década de 1970 após o trauma de 1941, quando o Lago Guaíba inundou parte da cidade e deixou 70 mil desabrigados.
O sistema conta com mais de 60 quilômetros de diques externos (em estradas como a rodovia Oswaldo Aranha e a avenida Castello Branco) e diques internos (em cursos d’água que deságuam no lago).
O Centro Histórico hoje é guarnecido pelo Muro da Mauá, estrutura de seis metros que se estende por 2,6 quilômetros. Esta é a barreira mais visível contra as inundações aos olhos da população.
O muro e os diques foram dotados de 14 comportas que podem ser fechadas em caso de risco. Para solucionar o problema de inundações no interior da cidade provenientes dos córregos, também foi projetado um sistema de drenagem composto por 23 casas de bombas responsáveis pelo retorno da água ao Guaíba.
O prefeito Sebastião Melo, que obteve 345.420 votos (49,72%) no primeiro turno, afirma desde maio que o complexo de proteção projetado entre as décadas de 1960 e 1970 deve ser “revisitado”.
Durante os debates, o prefeito disse que o sistema “se mostrou insuficiente para a quantidade de enchentes que enfrentamos”.
Com 182.583 votos (26,28%) no primeiro turno, Rosário diz que o sistema anti-enchentes é eficiente, mas que a gestão de Melo tornou a cidade vulnerável ao negligenciar fiscalizações, reposição de peças, transparência e comunicação adequada.
O petista também criticou a terceirização e a privatização de órgãos públicos.
“A crise que vivemos não é um acaso, não é uma fatalidade. Por um lado foi construída pelo negacionismo e pela imobilidade face às alterações climáticas, por outro pelo desmantelamento da gestão pública, pela desvalorização dos seus especialistas, técnicos e engenheiros”, afirma o petista no primeiro parágrafo de seu plano de governo.
Em vez de alterações climáticaso actual presidente da Câmara fala frequentemente sobre “adaptação climática” e “governança climática”.
Até a Justiça Eleitoral foi chamada a decidir sobre a representação de Melo que solicitou a retirada de uma pichação em que ele é retratado submerso nas águas da enchente – o Tribunal Regional Eleitoral (TRE) recusou a exigência.
O prefeito defende que a prevenção de desastres naturais é responsabilidade do governo federal, que construiu o sistema de proteção de 1970 por meio do Departamento Nacional de Obras de Saneamento (DNOS).
No primeiro debate do segundo turno, na Rádio Gaúcha, o prefeito leu o artigo 21 da Constituição Federal, segundo o qual cabe à União “planejar e promover a defesa permanente contra calamidades públicas, especialmente secas e inundações”.
Melo acusa os governos Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ambos do PT, de não investirem na manutenção do sistema. Ele também defende que a responsabilidade por eventuais falhas deve ser compartilhada entre todos, inclusive os prefeitos petistas que administraram Porto Alegre por quatro mandatos (1989-2004).
Rosário afirma que a União cumpriu seu papel ao construir um sistema contra enchentes na capital gaúcha, mas diz que a responsabilidade de zelar pelo imóvel, que pertence à prefeitura, foi negligenciada.
“Não é o presidente Lula quem tem que cuidar do assoreamento dos ralos e do hidrojateamento”, respondeu ele no debate na Rádio Gaúcha.
Um terceiro ponto de divergência entre os candidatos está relacionado à necessidade de recriar o antigo Departamento de Esgotos Pluviais (DEP).
Essa autarquia, concebida na década de 1970 para operar o sistema de drenagem da cidade, foi extinta em 2019 na gestão do prefeito Nelson Marchezan Jr. (PSDB) e teve suas funções absorvidas pela Secretaria Municipal de Águas e Esgotos (Dmae).
Eram técnicos e operários do DEP que mantinham e fiscalizavam as casas de bombas, equipamentos responsáveis pelo retorno da água acumulada no sistema pluvial para Guaíba.
Enquanto Rosário prega a recriação e o fortalecimento do DEP, Melo diz que o município nada fez pelo município e não merece outra chance.
Reconstrução de áreas afetadas
Melo e Rosário também não concordam com a reconstrução de Porto Alegre.
Para o autarca, a reconstrução já começou através da reabertura de espaços públicos, apoio ao empreendedorismo, “parcerias” (transferência de grande parte dos serviços municipais para o setor privado) e reparações em diques e outras estruturas.
A candidata petista, por sua vez, diz que o emedebista favorece os interesses dos grandes grupos econômicos e pinta um quadro irreal da cidade.
“Eu queria morar na Porto Alegre do anúncio do Melo”, disse um locutor em um anúncio do Rosário no primeiro turno.
Ela se apresenta como mais capaz de reconstruir a cidade pela proximidade com Lula e pelas experiências no Legislativo e no governo federal.
Procurada pela BBC News Brasil, a comissão de Melo não havia respondido até o momento desta reportagem.
Designado pela campanha de Rosário para falar sobre o assunto, o engenheiro eletricista e ex-diretor do DEP Vicente Rauber afirma que o atual sistema de proteção de Porto Alegre, desenvolvido por técnicos alemães, é “suficiente, atual e robusto desde que tenha a capacidade necessária manutenção e operação adequada.”
“Os alemães sugeriram um sistema muito simples, semelhante ao da Holanda, que poderia ter evitado em 90% as inundações de Porto Alegre”, sustenta.
“Por que não foi evitado? Porque não há manutenção das 14 comportas externas do Muro da Mauá e da Avenida Castello Branco. Além disso, as comportas da casa de bombas, que estão em sua maioria na mesma cota [nível] do Guaíba, também não recebem manutenção, pelo menos, desde 2020”, afirma o ex-diretor do DEP.
Rauber discorda de Melo quanto à responsabilidade da União.
“Quando o Sindicato contratou engenheiros alemães através do DNOS e construiu o sistema, fez a sua parte. O monitoramento e a prevenção são uma atividade de saneamento, e o saneamento é uma responsabilidade constitucional dos municípios”, argumenta.
O representante da campanha de Rosário afirma que as obras necessárias, como o reparo das comportas externas das casas de bombas e a reconstrução do dique que protege o bairro Sarandi, têm como objetivo reforçar o sistema e não abandoná-lo.
Ele não acredita na viabilidade e eficácia da reforma das casas de bombas para aumentar a altura dos motores, uma das soluções que vem sendo defendida desde a enchente.
“Que bobagem [levantar os motores]. Isso não será feito. Cada motor, cada bomba tem seu encaixe. Eles teriam que ser desmontados. O sistema foi construído para proteger a cidade, não para limpar a cidade”, destaca.
O professor do Instituto de Pesquisas Hidrológicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Fernando Dornelles diz que, em vez de desenvolver percepções pontuais sobre o problema das enchentes, Porto Alegre precisa de “uma política de prevenção dissociada das marés políticas”.
O pesquisador afirma que o sistema atual é falho e precisa ser revisto.
“Não tem como dizer que foi um sucesso. Falhou miseravelmente”, garante.
O problema, na opinião de Dornelles, é que, mesmo que não fosse atingida a altura de seis metros para a qual a estrutura foi projetada, as casas de bombas ficavam inundadas.
“O projeto original não previa casas de bombas que funcionassem com sistema inundado”, argumenta.
Dornelles expressa ceticismo em relação a duas medidas que têm sido frequentemente defendidas.
A primeira é a prioridade no desassoreamento (remoção de sedimentos como areia e cascalho) do Guaíba e dos rios que compõem sua bacia hidrográfica.
“O desassoreamento depende de um estudo que estabeleça quanto as obras poderão baixar da linha de água, qual será o custo e a frequência do serviço. A remoção de sedimentos provocará movimentos no curso dos rios. O orçamento ficará na casa dos bilhões. Vale a pena investir tanto?” ele pergunta.
A ideia de cidades esponja, por sua vez, é vista pelo professor como adequada para áreas urbanas, mas incapaz de libertar as cidades da bacia do Guaíba de uma enchente como a de maio.
“O conceito de cidade esponja depende da escala e do tamanho da bacia. A área urbana da bacia do Guaíba equivale a cerca de 3%. Nesse ritmo não há esponja capaz de absorver o volume de água que estava presente”, afirma.
A possível reeleição indica que as inundações estão em segundo plano?
O cientista político Carlos Borenstein, da consultoria Arko Advice, afirma que o fato de Melo ter vencido o primeiro turno e ser favorito no segundo turno, segundo as pesquisas, não significa que a enchente não tenha sido importante na eleição.
“A enchente foi tema dominante na propaganda e nos debates desde o primeiro turno”, argumenta.
A questão não é se o eleitor teve ou não em conta a catástrofe climática ao votar, mas sim ter em conta as diferentes abordagens da questão por parte dos candidatos.
“A campanha de Melo teve um grande sucesso estratégico: afirmar que diversas cidades do mundo sofreram com enchentes e que, portanto, a culpa não é do prefeito”, aponta Borenstein.
Até maio, quando ocorreram as enchentes, Melo já aparecia como favorito nas pesquisas de intenção de voto e sua gestão era bem avaliada pela população de Porto Alegre, lembra Borenstein.
“Se não tivesse havido enchente, a reeleição de Melo no primeiro turno teria sido muito provável. Mesmo com a enchente, ele quase foi reeleito no primeiro turno, o que significa que, para o eleitorado, o saldo da seus quatro anos de governo são positivos”, explica.
O próprio slogan do prefeito fala desse estado de espírito, diz o cientista político, usando o lema “Porto Alegre melhorou”.
“É claro que o prefeito aproveita essa situação para evitar a responsabilidade pelas falhas de sua gestão, mas, no final, consegue impor o conceito de que melhorou a cidade”, finaliza o cientista político.
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