Um grande volume de chuva previsto pelo menos desde segunda-feira (20/5) trouxe de volta às ruas de Porto Alegre um cena comum nos piores dias de catástrofe ambiental que atinge o Rio Grande do Sul: caminhões e barcos retirando pessoas de pontos isolados pela água.
As chuvas, que começaram na madrugada desta quinta-feira (23/5) e devem continuar ao longo de sexta-feira (24/5), atingiram a marca de 100 milímetros em apenas 12 horas, equivalente à média histórica de todo o mês de maio. , segundo o serviço meteorológico MetSul.
Em partes das zonas leste e sul, relativamente poupadas na primeira fase da enchente, as chuvas atingiram 130 mm no mesmo intervalo, segundo o Instituto Nacional de Meteorologia (Inmet)
A reportagem da BBC News Brasil circulou pelas zonas leste, norte e centro da capital ao longo do dia e presenciou diversos pontos de alagamento em estradas como Ipiranga, Bento Gonçalves, Goethe, Silva Só e outras avenidas.
Até o córrego Dilúvio, curso d’água que atravessa a capital no sentido leste-oeste, apresentava nível de água incomum, aproximando-se do leito das pontes das avenidas Azenha e Silva Só.
O prefeito Sebastião Melo (MDB) anunciou nesta sexta-feira a suspensão das aulas na rede pública e privada e o fechamento das comportas do sistema de contenção Guaíba.
A prefeitura foi muito questionada nesta quinta-feira sobre o motivo de não tomar mais medidas antecipadamente considerando que havia previsão de chuva.
Em conferência de imprensa, Sebastião Melo disse que “a Câmara Municipal não foi apanhada de surpresa pelas chuvas”.
Segundo ele, a prefeitura sabia das chuvas pela previsão do Climatempo e por isso tomou algumas decisões, mas o volume foi superior ao esperado.
“Assim que a chuva começou a acontecer, cheguei ao comitê de crise e tomei as decisões. Algumas pessoas podem perguntar ‘mas você poderia ter feito isso ontem’, é uma pergunta legítima, mas em tempos de chuva tudo fica muito difícil” , disse Melo. “Sabíamos que ia chover, mas as chuvas foram especialmente fortes.”
A Câmara Municipal disse ainda que o facto de a rede já estar muito sobrecarregada afetou a capacidade de contenção do problema, mas que não houve “colapso” do sistema de proteção contra chuvas.
Entre as decisões tomadas, segundo o autarca, está o encerramento das comportas anti-inundações do rio. Segundo a prefeitura, 5 das 14 comportas ainda estavam abertas na tarde desta quinta, mas estavam “prestes a fechar”.
Segundo o diretor do Departamento Municipal de Águas e Esgotos (Dmae), Maurício Loss, algumas das comportas que foram mantidas abertas tinham como objetivo auxiliar na drenagem de áreas alagadas; mas assim que se identificou que houve uma reversão, ou seja, que as águas estavam fluindo do rio para a cidade, as comportas foram fechadas.
O diretor do Dmae também negou que o sistema de saneamento da capital tenha entrado em colapso e atribuiu a situação às chuvas “mais do que o esperado”.
Loss também disse que 10 das 23 estações de bombeamento fluviais da cidade estão operacionais.
O Dmae afirmou que, nos últimos 20 dias, parte das casas de bombas ficaram alagadas e que a troca dos motores não é imediata, depende do pedido das máquinas, que já foi feito.
A prefeitura tem enfrentado acusações de “possível negligência e omissão” em relação ao sistema de proteção contra inundações da capital.
Segundo documentos do Dmae divulgados esta semana, a administração foi avisada por técnicos que havia problemas na estrutura de bombeamento de água.
‘Não tem nada para fazer’
Os artesãos Rogério Pereira, 59 anos, e Regina Paproski, 61 anos, viram frustrada a terceira tentativa de voltar para casa nesta quinta-feira (23/5).
A ideia era começar a limpar o apartamento térreo onde vivem há três décadas, na Avenida Praia de Belas. Invadida pelas águas na noite de sexta-feira (3/5), a propriedade, assim como parte do quarteirão, ficou isolada pela água por quase 20 dias.
O plano do casal teve que ser adiado devido às enchentes no local, que tornaram o prédio inacessível pela segunda vez.
Após entrarem na propriedade, pretendiam destruir os pequenos muros de contenção improvisados com os quais tentavam estancar a água e retirar móveis e pertences destruídos.
“Essa chuva quebrou nossas pernas. Hoje, a esquina mais próxima (Avenida Praia de Belas e Rua Barão do Gravataí) já estava com 40 centímetros de água. Agora não sabemos o que fazer”, diz Rogério.
O edifício onde vivem Rogério e Regina é uma construção de meados do século XX, anterior ao aterro na Avenida Praia de Belas. O artesão desconfia que um erro de projeto deixou seu apartamento mais baixo que o restante do prédio.
Com o passar do tempo, os dois tiveram que lidar com a umidade e o acúmulo de água da chuva, que em alguns momentos ameaçava invadir a área interna. Nada preparou o casal, porém, para o que aconteceu nas últimas semanas.
“Na manhã do dia 3 não chovia, mas acordamos com água nas aberturas (do apartamento). Percebemos que havia algo diferente ali. À noite, a água já invadia a sala e a cozinha. Vimos que não ia parar por aí e decidimos ir embora”, conta Rogério.
Os dois se abrigaram na casa da irmã de Rogério, no bairro Bom Jesus, levando consigo os gatos Micuim e Maia. No dia 4, um sábado, a água no chão do apartamento já chegava a 30 centímetros. Na segunda-feira (5/6), a situação foi ainda pior.
“A água chegava até o peito, tinha coisas flutuando. A geladeira começou a tombar”, lembra o artesão.
Na véspera (22/5), Rogério voltou ao local para uma última vistoria antes do início da limpeza.
“Parece que uma bomba atômica entrou no apartamento. Não acreditamos que só o subir e descer da água faça com que coisas de todas as partes da casa fiquem espalhadas por todos os cômodos, misturadas, inúteis. Sem falar no mau cheiro”, diz.
Apesar da catástrofe, o morador da Praia de Belas considera-se um privilegiado.
“Tivemos muita sorte. Existem milhares de pessoas numa situação ainda pior que a nossa. Temos comida, cama, roupa, nossos bichinhos estão abrigados”, avalia.
O casal pretende fazer pequenas reformas no imóvel, mas Rogério confessa que mal sabe por onde começar.
“No longo prazo, não há nada que você possa fazer. Teremos que conviver com a sensação de medo de estar ali, na cama, e ocorrer uma nova enchente”, afirma.
Denúncia ao Ministério Público
Os documentos do Dmae foram anexados pelo deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) em ofício enviado nesta quarta-feira ao procurador-geral do Estado, Alexandre Saltz, no qual solicita a abertura de processo para apurar “possível negligência e omissão” da prefeitura em relação ao sistema de proteção contra inundações da capital.
O documento contém uma série de ordens e relatórios dos servidores do Dmae nos quais os técnicos solicitam ações em relação a falhas no sistema.
Entre as perguntas feitas pelo Psol estão:
- O que foi feito em 2018 quando engenheiros apontaram falhas no sistema de descarga das bombas do Rio Guaíba?
- O processo administrativo para resolução de problemas em bombas foi interrompido em 2019. Por que ficou parado por três anos? Entretanto, foram tomadas outras medidas de reparação?
- A falta de manutenção e qualificação do sistema de proteção contra chuvas poderia ter evitado o agravamento dos danos causados pela enchente dos rios em abril e maio de 2014?
- A prefeitura considerou as diretrizes do IPCC (painel intergovernamental sobre mudanças climáticas) e do Plano de Ação Climática da cidade em suas ações nos últimos anos?
Sem citar os documentos nem a carta enviada ao Ministério Público, o presidente da Câmara Sebastião Melo defendeu-se na conferência de imprensa desta quinta-feira, afirmando que todas as obras necessárias exigem um volume elevado de recursos que a Câmara Municipal não tinha disponíveis.
Disse ainda que foram investidos mais de R$ 35 milhões na dragagem (limpeza) dos córregos (córregos) e que a situação teria sido pior se isso não tivesse sido feito.
Melo também acusou a “esquerda e a extrema esquerda” de criar uma “narrativa mentirosa” sobre as enchentes em Porto Alegre.
“Essas pessoas governaram a cidade durante 16 anos”, afirmou, referindo-se às gestões petistas na capital na década de 1990 (1989-2004).
Melo é prefeito de Porto Alegre desde 2021. Antes disso, a cidade era administrada pelo PSDB (2017-2021), pelo PDT (2013-2017) e pelo partido de Melo, então denominado PMDB (2009-2010).
Drenos e lixo
Diferentemente do início do mês, quando a maior parte da enchente foi causada pelo avanço das águas do Guaíba sobre as zonas norte e centro, desta vez as enchentes foram causadas principalmente pelo transbordamento de bueiros e córregos como o Feijó, próximo no bairro Sarandi, e o Cavalhada, na zona sul.
Os bairros Restinga e Santana, na zona leste, e Cavalhada, na zona sul, que não registraram alagamentos nos primeiros dias de maio, registraram pontos de alagamento e bloqueios de ruas.
No bairro Camaquã, crianças e funcionários da escola infantil Paraíso dos Baixinhos foram resgatados em uma operação que envolveu pais, Corpo de Bombeiros e Exército.
O resgate foi prejudicado por obras inacabadas em um oleoduto da região, que começou a jorrar água e até impediu a passagem de um caminhão do Exército.
Em outros locais, áreas que já estavam secas ficaram novamente submersas.
Na Avenida José de Alencar, no bairro Menino Deus, quase duas dezenas de comerciantes foram resgatados. A região registrava recuo das águas desde domingo (5/12). No bairro Cidade Baixa, ruas como Barão do Gravataí, Baronesa do Gravataí, Luiz Afonso e Joaquim Nabuco tiveram o mesmo destino.
O excesso de chuva foi responsável por pelo menos um ponto de alagamento: o Parque Farroupilha, popularmente chamado de Redenção, no bairro Bom Fim. No final da tarde, a zona envolvente à fonte do parque estava coberta pela água que ali se acumulava desde a madrugada.
Uma postagem do advogado Sérgio Achutti Blattes em rede social nesta quarta-feira (22/5) indicou que os alagamentos na região começaram antes da chuva. “Hoje, 22 de maio, a Rua Aureliano (Avenida Aureliano de Figueiredo Pinto), do lado do TJ/RS, voltou a alagar”, escreveu o advogado na postagem, que trazia um vídeo da via alagada entre os prédios do Tribunal de Justiça do Estado de Justiça e Instituto de Pensões do Estado.
Questionado sobre a limpeza dos esgotos da cidade e a retirada do lixo durante a conferência de imprensa de quinta-feira, o autarca respondeu que têm um contrato de limpeza mas que “se há esgotos entupidos” é porque “o lixo foi colocado de forma inadequada”.
“Peço repetidamente às pessoas que não joguem lixo na rua”, disse o autarca na conferência de imprensa.
Questionado sobre a possibilidade de pedir ajuda, como do Exército, para limpeza, o prefeito afirmou que o Exército está ajudando Porto Alegre, mas também tem que atuar em outras cidades e que o número de militares trabalhando deve ser aumentado.
A prefeitura também informou que está realizando um leilão para contratar mais empresas para fazer a limpeza.
O mês de maio já detém o recorde de chuvas na capital. Segundo o Instituto Nacional de Meteorologia, de 1º de maio às 15h de quinta-feira (23/5), a precipitação atingiu 461 mm, o maior valor registrado desde o início das medições, em 1916. O segundo maior volume, de 405 mm, foi alcançado em 1941, o ano da enchente que, até este ano, era considerada o evento mais extremo do tipo no Estado.
*cooperou Letícia Morida BBC News Brasil em São Paulo
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