Por Daniel Bernoulli* — No dia 9 de outubro foi publicada a Lei nº 14.994/2024, que altera diversos dispositivos legais relativos ao combate à violência doméstica, com o objetivo de reforçar a proteção da mulher em nossa sociedade. Houve aumentos de penas e alterações na sua aplicação, mas a criação do crime autónomo de feminicídio representou a alteração legislativa mais relevante que esta lei trouxe.
Quando olhamos para trás, vemos que a proteção da mulher, pelo menos no âmbito jurídico, tem merecido maior cuidado e atenção ao longo dos séculos no Brasil. Na época das Ordenações Filipinas, era autorizado matar a esposa em caso de adultério, bem como o amante, dependendo de sua posição social (se fosse juiz, nobre ou pessoa de qualidade superior, a lei proibia o homicídio). .
O Código Penal de 1940 não permitia mais tais absurdos. Contudo, o assassinato de mulheres ainda era tratado juntamente com outros homicídios, com regimes de punição brandos. Somente após o assassinato da atriz Daniela Perez – e a comoção social que o caso gerou – o Congresso Nacional se mobilizou e passou a considerar o homicídio qualificado como crime hediondo.
Em 2015, o feminicídio finalmente começou a figurar na categoria penal de homicídio, sendo incluído como um de seus qualificadores. Graças ao entendimento dos Tribunais Superiores de que essa qualificação poderia coexistir com outras, inclusive de natureza subjetiva, o nível das penas para o homicídio contra a mulher foi elevado e o seu cumprimento tornou-se mais rigoroso.
A transformação da qualificação do feminicídio em tipo penal próprio carrega evidente simbolismo e, por isso, merece aplausos. O legislador entendeu que o homicídio cometido contra a mulher por motivo da sua condição de sexo feminino exige destaque no Código Penal como crime autônomo, deixando de ser qualificação coadjuvante e passando a ser protagonista no combate à violência fatal contra a mulher.
Há aspectos muito positivos nesta mudança. A primeira delas é o aumento significativo da pena abstrata. Se antes a pena para homicídio qualificado por feminicídio variava entre 12 e 30 anos, agora tem o mínimo de 20 e o máximo de 40 anos, pena máxima prevista no Código Penal.
O legislador teve ainda o cuidado de incorporar as causas de aumento da pena anteriormente previstas (quando esta era qualificada), acrescentando outra, válida quando existam valores semelhantes aos qualificadores previstos no homicídio. O cumprimento da pena também se tornou mais rigoroso. A partir de agora, será necessário cumprir 55% da pena – mesmo que o réu seja primário – para progredir ao regime.
Outro ponto positivo é a inexistência da figura do privilégio. Esse motivo de redução da pena, previsto na modalidade penal do homicídio, sempre foi uma válvula de escape para os argumentos da defesa, pois, ao ser reconhecido pela Justiça Popular, afastava a hediondez do crime e permitia ao assassino cumprir pena mais branda. sentença.
A nova lei, porém, não levou em consideração o entendimento do Superior Tribunal de Justiça de que a motivação do crime não pode ser confundida com o simples fato de se tratar de um crime contra a mulher. Esse entendimento permitiu a votação de qualificadores de motivos juntamente com o feminicídio. Agora, quando o júri reconhecer o crime de feminicídio, não julgará mais o motivo, fator que sempre resultou em aumento da pena.
Além disso, o legislador deixou em aberto o julgamento do feminicídio propriamente dito. O júri decide se o agente cometeu ou não o crime com base na votação de questões regulamentadas no Código de Processo Penal. Assim, quando a defesa alega que o crime em questão não é feminicídio, mas sim homicídio, a lei não prevê como o juiz (que preside o Tribunal do Júri) deve formular as questões que permitem ao júri escolher entre uma tese ou outra .
A elaboração dessas questões será, portanto, objeto de muito debate na comunidade jurídica, e os Tribunais Superiores terão – mais uma vez – papel fundamental na definição de como será essa votação, algo que poderia ter sido regulamentado na nova lei.
De qualquer forma, não há como negar que a criação desse novo crime autônomo, o feminicídio, representa avanços no aspecto punitivo, em consonância com os anseios de uma sociedade que busca romper com a cultura de assassinato de mulheres por indivíduos que cometem esse crime. pelo simples fato de serem mulheres. Porém, é preciso cautela para que o caminho da punição – o processo – permita ao jurado manifestar sua vontade em cada caso, evitando assim surpresas e, sobretudo, injustiças.
*Procurador do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT)
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