A inflação está desacelerando, desemprego relativamente baixo, os índices do mercado de ações subindo e taxas básicas de juros caem pela primeira vez desde maio de 2022.
Olhando para esta fotografia, o desempenho do economia americana deveria ter dado ao vice-presidente Kamala Harris uma vantagem mais confortável na sua candidatura à Casa Branca.
A disputa entre ela e o republicano Donald Trump No entanto, parece ser o mais apertado da história dos EUA.
Bons indicadores económicos beneficiam tradicionalmente o presidente ou o partido que procura a reeleição. Nos EUA, esta ideia resume-se numa frase que ficou famosa por James Carville, conselheiro político do ex-presidente Bill Clinton, mas que é bem conhecida dos analistas políticos: “É a economia, estúpido!” (“É a economia, estúpido”, em tradução literal).
Portanto, à primeira vista, a corrida eleitoral de 2024 nos EUA parece apresentar um paradoxo. Os americanos pararam de votar com seus bolsos? A resposta curta é não, segundo especialistas ouvidos pela BBC News Brasil.
A economia, dizem, continua a desempenhar um papel central no comportamento dos eleitores americanos, mas para compreender o que está a acontecer é necessário ir além dos grandes indicadores macro.
‘É inflação, estúpido’
Mesmo com uma inflação melhor, o aumento dos preços é uma das principais queixas dos eleitores americanos.
Ele aparece no topo da lista de reclamações em entrevistas realizadas pelo instituto de pesquisas AtlasIntel e é citado como o maior problema dos Estados Unidos atualmente. “Economia” vem em segundo lugar.
“A inflação é um indicador que impacta muito a percepção do público, ainda mais do que outros dados económicos, porque afecta todos em todos os momentos”, afirma Pedro Azevedo, analista-chefe para os Estados Unidos da AtlasIntel.
“Você se lembra dela quando vai abastecer seu carro, quando vai à loja.”
Os preços dispararam nos EUA durante a pandemia. Inicialmente, porque o fechamento de portos e outras restrições impostas pela emergência sanitária impactaram a produção e distribuição de diversos produtos.
Em segundo lugar, pelo generoso pacote de estímulos aprovado pelo governo, que chegou às famílias americanas, entre outras formas, através do auxílio emergencial.
No jargão dos economistas, estes foram choques de oferta e procura, respectivamente, que se combinaram numa inflação explosiva. Em junho de 2022, o índice anual atingiu 9,1%, o nível mais alto desde novembro de 1981.
Desde então, vem desacelerando, atingindo 2,4% em setembro passado.
Mas quando se trata de inflação, o que é considerado uma boa notícia não chega automaticamente ao seu bolso. A desaceleração significa que o que já é mais caro ficará mais caro a partir de agora em um ritmo um pouco mais lento. Não há redução no nível de preços.
“O americano médio não lê estatísticas de inflação”, diz Steven Kamin, pesquisador sênior da grupo de reflexão (centro de estudos) American Enterprise Institute.
“Ele não vai fazer distinção conceitual entre nível de preços e taxa de variação. O que ele sabe é que os preços dos supermercados estão altos”, acrescenta o especialista, que teve longa carreira no Federal Reserve (FED), o banco central americano. .
“Pode até haver uma recuperação, mas o que conta é que muita gente se sente ‘mais pobre’ do que ontem”, pondera José Francisco de Lima Gonçalves, professor aposentado da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA-USP) e economista-chefe do Banco Fator.
Durante um período entre 2021 e 2022, os salários nos EUA cresceram menos que a inflação, de acordo com dados do Bureau of Labor Statistics (a agência responsável pela publicação de dados do mercado de trabalho).
A perda de poder de compra, no entanto, ultrapassa esta faixa. Isto porque as estatísticas oficiais reflectem apenas uma parte do fenómeno, aquela que aparece em grande número, em média.
Mas a cesta de consumo (e, consequentemente, a inflação) varia entre uma família e outra —alguns pagam aluguel, outros gastam mais em alimentação e serviços essenciais do que em bens e lazer, por exemplo.
Isto ajuda a explicar por que muitos americanos ainda se queixam de que o seu rendimento compra agora menos do que antes.
A percepção negativa sobre a inflação também contamina outros indicadores, acrescenta Azevedo. O governo Joe Biden-Kamala Harris manteve níveis significativos de criação de emprego e, no entanto, muitos americanos estão pessimistas em relação ao mercado de trabalho porque sentem que os aumentos salariais não foram suficientes para compensar o aumento do custo de vida.
O economista-chefe para os Estados Unidos da consultoria Oxford Economics, Bernard Yaros, chama o aumento do custo de vida de “o espírito da época do ciclo eleitoral de 2024″.
Num relatório enviado aos clientes no final de outubro, reiterou que o tema é a principal preocupação dos eleitores, à frente de questões como saúde, controlo de armas, segurança, aborto, educação e alterações climáticas.
Para Yaros, a percepção sobre a inflação é o que deve definir o voto em muitos dos estados de pêndulo (que oscilam entre Democratas e Republicanos) e, portanto, o resultado da eleição.
Sonho americano, pessimismo e polarização
A economia continua sendo um ponto central para os eleitores americanos e, não por acaso, tem figurado nos discursos e propostas tanto de Kamala Harris, que chegou a sugerir uma espécie de controle de preços para evitar aumentos abusivos, quanto de Donald Trump.
Em comício em Las Vegas, na reta final da campanha, no dia 24 de outubro, ele abriu o evento com uma provocação sobre o tema: “Você está melhor do que há quatro anos? Acho que não”.
A cidade é um dos epicentros de um problema que está lateralmente ligado ao aumento do custo de vida, mas que ganhou vida própria pela sua gravidade e que afecta diferentes regiões do país: a dificuldade de acesso habitação.
Entre 2019 e 2023, os aluguéis na área metropolitana de Las Vegas aumentaram em média 34%, enquanto os salários aumentaram 14%, segundo dados compilados pela plataforma de compra, venda e arrendamento de imóveis Zillow.
A crise imobiliária faz parte de uma reflexão mais ampla sobre a percepção dos americanos sobre o seu bem-estar, qualidade de vida e acesso a oportunidades.
Nas últimas três décadas, a economia do país sofreu profundas transformações: a indústria perdeu importância, parte da produção foi redirecionada principalmente para a Ásia e os serviços tornaram-se o principal motor do crescimento.
Paralelamente, países como a China viram as suas economias crescer e ganhar importância geopolítica. Os EUA continuam a ser o país mais rico do mundo, mas perderam o protagonismo e a influência que tiveram no período pós-Segunda Guerra Mundial e no período imediatamente após o colapso da União Soviética.
Este novo mundo significou uma vida melhor para uma parte da população, diz Gonçalves, mas pior para outra.
“A classe média americana, a forma como se consolidou no pós-guerra e se tornou exemplo para o mundo — ter carro, casa própria, bens de consumo duráveis, tirar férias uma vez por ano… Esse padrão deles não é mais existe”, avalia o economista.
Estudar, explica, é mais caro para muitos americanos e não traz o mesmo retorno financeiro; acesso à saúde, pior.
O aprofundamento das desigualdades na última década tornou o sonho americano, a ideia de que o sucesso e a prosperidade são acessíveis a todos, bastando fazer um esforço, menos palpável.
“Hoje, para muita gente, o pensamento é: ‘Não venha com esse esforço! Estou me esforçando há décadas e nada acontece’”, ilustra o professor.
É um sentimento que gera pessimismo e que é explorado por Donald Trump com a promessa de voltar ao passado — não por acaso, o seu slogan de campanha é Torne a América grande novamente (“Faça a América grande novamente”, em tradução literal).
Neste sentido, a profunda polarização que dividiu os EUA na última década também afecta a percepção dos eleitores, dependendo do lado em que estão, afirma Pedro Azevedo, da AtlasIntel.
Ele usa o tema da economia como exemplo. Em dados agregados, 28% dos entrevistados pelo instituto avaliam a situação como boa e 53% como ruim.
Olhando apenas para os Democratas, 57% avaliam a economia de forma positiva e 14% dizem que ela vai mal; Entre os republicanos, apenas 5% dizem que a economia vai bem, enquanto 88% pensam negativamente.
É natural que os eleitores tendam a avaliar negativamente os partidos da oposição, mas este nível de polarização, diz ele, é algo recente, da última década, e também ajuda a explicar o mau humor dos americanos com a economia.
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