Celebrado pelo impacto dos filmes que criou há quase 25 anos, o cineasta Marcelo Gomes viu seus filmes como Paloma e Cinema, aspirinas e abutres aparecerem em circuitos de festivais na Espanha, Itália, Alemanha, França, Cuba, Peru, México e Holanda . Agora, em um momento especial, além de lançar nos cinemas o longa-metragem Retrato de um Certo Oriente, com o apoio da escrita de um autor forjado em Brasília, Milton Hatoum, Marcelo está a uma semana do pré-lançamento do intrigante documentário Criaturas da Mente no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro (como filme de abertura do evento, fora de competição). O filme ainda inédito fala sobre um dos fundadores do Instituto do Cérebro da UFRN, Sidarta Ribeiro.
“Milton Hatoum e eu ainda estudamos a possibilidade de trabalharmos juntos novamente: haverá dois de seus contos em questão para futuras adaptações. sobre dois contos de Clarice Lispector — da infância no Recife. Mais tarde, com Cao Guimarães, fiz o longa-metragem O Homem das Multidões, inspirado no conto Cinema, aspirinas e abutres, de Edgard Allan Poe. no meu relato de viagem, tio-avô, e uma história é uma obra literária, não é mesmo? No meu trabalho, me encanto pela literatura e adoro narrativas excepcionais, e procuro sempre estar com eles. “, diz o diretor do Estou me guardando para quando chegar o carnaval.
Em contraponto à explosão dessa alegria do título anterior, Retrato de um Certo Oriente deu ao cineasta distanciamento (mas reflexão) em torno de um país diferente. “Agora existe essa medida de ódio desproporcional: sem qualquer forma de compreensão – ódio pelo ódio. Isso só afasta as pessoas no Brasil. uns aos outros, por terem pensamentos diferentes de famílias divididas, por motivos políticos”, ressalta. No processo de realização do filme, aprendemos sobre um quase antídoto contra o radicalismo exacerbado. “Nunca vimos ódio religioso no Brasil. Isso é inaceitável em nosso país. Acho que se há algo que meu filme pode dizer ao Brasil é: ou adotamos uma coexistência pacífica ou não haverá futuro para este país”, ele conclui. .
Entrevista // Marcelo Gomes, cineasta
Além da autenticidade, Retrato de um Certo Oriente é apoiado pela literatura e pelos desenvolvimentos relativos à força da natureza, à questão da imigração e à revelação da depredação das culturas e fronteiras indígenas. Muitos temas contemporâneos em um filme histórico, certo?
Em todos os meus filmes históricos procuro sempre uma forma orgânica de refletir sobre questões atuais. Acho que o artista é uma pessoa do seu tempo e, mesmo fazendo um filme de época, sou Marcelo Gomes, em 2024, fazendo um filme. Coisas que me angustiam têm que estar nisso. Mas o filme foi muito inspirado no livro de Hatoum, que se chama Relatório de um Certo Oriente. Há dois elementos fundamentais nisso: a memória, ou seja, os personagens utilizam memórias, relacionam suas lembranças para, de uma forma ou de outra, se libertarem de traumas passados. E o outro fato importante, que está presente em todo o meu cinema, é a questão da alteridade. E no livro de Hatoum são libaneses migrando para a Amazônia.
Depois veio a injeção da mistura de personagens?
Projetamos o encontro das culturas amazônica e libanesa. E o que eu fiz? O que eu trouxe do contemporâneo? No Líbano, naquela época, ocorriam as primeiras lutas, as primeiras guerras por questões fundiárias. Entre palestinos, libaneses e israelenses. E, no Brasil, desde a sua inauguração, como país, existe uma luta pela terra entre a população originária da Amazônia. Então juntei esses dois elementos e apresentei um filme onde todos esses personagens estão à deriva. Tanto no Líbano como na Amazónia tiveram de fugir da terra por razões sociais e políticas. Eles estão procurando um lugar para morar. Então foi isso que eu trouxe como contemporâneo da história, que teve como base iniciática o livro do Milton, o Relatório. Transformo os fluxos de consciência em silêncios e os olhares das personagens, transformo memórias escritas em imagens fotográficas: o filme tornou-se o retrato de uma história de um determinado Oriente.
Em relação à autenticidade dos estrangeiros, o que você pode dizer sobre o ganho?
Eu poderia ter atores ingleses ou americanos falando inglês. Poderia ter atores brasileiros falando português com um pouco de sotaque árabe. Mas pensei que se trouxesse os atores do Líbano isso daria muita verdade à história. A verdade estava ali: no olhar deles para a região amazônica que eles não conheciam; na forma como falam, no sotaque, na cor, na forma como se comportam no mundo, na sua fisicalidade. Eles iam trazer tudo isso. Pedi que escrevessem diários sobre a Amazônia e assim aquelas primeiras impressões ficariam sempre na cabeça deles, porque, realmente, seria a primeira viagem deles à Amazônia. E também convidei atores da etnia Tucano, do Alto Rio Negro, para fazerem os personagens indígenas, porque eles também iam trazer a sua língua, a sua cultura, a sua dança, os seus deuses. Então fiquei muito feliz com essa escolha, porque nos ensaios já existia essa mistura de culturas e línguas.
Essa fusão permeia a fé?
Milton Hatoum dizia que Manaus dos anos 1950 era exatamente isso: uma babel de línguas. Havia pessoas de todo o mundo, cada um falando a sua língua e vivendo na mesma região, sem brigas, sem ódio, sem qualquer preconceito religioso. Todos foram aceitos. E para pensar nisso, construí uma cena onde o muçulmano está rezando, o cristão está rezando e os indígenas estão rezando. Eles estão rezando na mesma área, na mesma aldeia e não há preconceito, nem ódio religioso e nem rejeição do Deus um do outro. Ali estava o lugar da utopia. Isto é o que queremos do mundo. Que todas as guerras acabem. Não há razão para haver uma guerra por uma questão religiosa. Os deuses não ordenam que ninguém seja morto. São os homens que matam as pessoas. A busca por poder, ganância, dinheiro.
Como o cinema afetou você? E como será o retorno ao Festival de Cinema Brasileiro de Brasília?
O cinema está na minha alma desde criança: gostava muito de contar histórias. E a pergunta oral está muito presente lá em Pernambuco. Gostamos muito de conversar e contar histórias. No meu caminho artístico eu conto minhas histórias. Quanto ao festival, estou muito feliz. Já tive exibições de filmes lindas em Brasília. Meu primeiro curta Maracatu, maracatus, no início da minha carreira, chegou ao meu primeiro festival (o de Brasília). Saí vitorioso e isso me deu muita energia para continuar a luta inglória de fazer cinema no Brasil. Em 2024 chego com um novo documentário (Criaturas da Mente) que é uma conversa com Sidarta Ribeiro sobre sonhos e o inconsciente. Ele reflete como neurocientista e sob a perspectiva do conhecimento ancestral das culturas afro-brasileiras e indígenas. Há o trabalho científico de Siddhartha em diálogo com o meu cinema. Um dos filmes que menciono, para falar de neurociência, é Maracatu, maracatus, que ganhou Brasília há 25 anos. Estar de volta, apresentar a estreia mundial tem um sabor muito especial.
O cinema é, essencialmente, onírico. Seus sonhos mudaram depois de realizar Criaturas da Mente?
Não vou dizer tudo o que tenho a dizer sobre esta questão para não estragar o documentário; mas cinema é um sonho: você entra numa tela escura, né? Sente-se na cadeira, abra os olhos e encontre seres imaginários, seres não reais, fantasmas criados a partir de imagens. E eles se movem?! Tudo no cinema tem a ver com o sonho. E, logicamente, à medida que trabalhamos com cinema, a nossa relação com o sonho muda. Às vezes sonho cenas de filmes, às vezes acordo à noite para anotar sonhos que têm a ver com histórias que estou filmando, com filmes que estou editando. Os sonhos e a realidade dos cineastas trazem limites muito próximos. Com fronteiras próximas, eles se misturam. Há uma grande surpresa nisso no novo filme que não vou revelar (risos).
O Brasil tem nova visibilidade, no cinema, no exterior?
Passamos por uma pandemia e por um governo fascista, que queria acabar com o cinema. Foram dois grandes golpes. O cinema ainda não se restabeleceu em termos de bilheteria. Estou muito feliz com a grande surpresa do Walter Salles e do filme que ainda estou aqui. Mais de 1 milhão de telespectadores em apenas alguns dias de transmissão. Talvez este seja o início da reconciliação do povo brasileiro com o cinema nacional. Isso é fundamental para qualquer cultura. O cinema é a cara de um país, e precisamos nos ver no espelho, até para nos entendermos melhor. Acho que o governo fascista prejudicou muito a imagem do Brasil e atrapalhou muito o processo produtivo. Nesse sentido, ficamos um pouco para trás nos festivais. Parece que estamos de volta: o meu filme esteve em Rotterdam, o de Karim Aïnouz esteve em Cannes e o de Walter esteve no Festival de Veneza. Eles estão se abrindo para o cinema brasileiro e o Brasil vive um momento muito mais feliz. Isso incentiva os empreendedores.
Você aprendeu alguma coisa com esse filme?
Teve um elemento muito interessante: a perspectiva do estrangeiro que não traz preconceito. É um olhar sem julgamento prévio, ele tem um novo olhar sobre o país. Ele observa as coisas de uma maneira diferente. Esse filme me deu confiança no Brasil, um país que amamos e odiamos várias vezes ao dia. De certa forma, reconciliou-me com as coisas magníficas que por vezes ficam esquecidas: a hospitalidade, a forma de receber, a dança, a festa e a alegria de viver.
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