O Sexta-feira Negra está chegando e, com ele, as massas de consumidores dispostas a lutar para conseguir os melhores descontos e ofertas.
Este ano, as ofertas incluem ainda novos produtos e serviços de clínicas de reprodução humana. Como explicar esses níveis de consumo? Somos viciados em compras? Neste artigo questionamos esta ideia e revisamos a importância do contexto social nos nossos hábitos de consumo: quanto, o que e quando consumimos.
Compulsão de compras?
O problema da compra excessiva não é novo, nem as tentativas de explicar o fenómeno como resultado de uma desordem. Em 1915, o psiquiatra Emil Kraepelin definiu-a como “mania de compras” ou “oniomania”.
Em 1924, Eugen Bleuler definiu a compra excessiva como um “impulso de compra incontrolável” ou “loucura impulsiva”, juntamente com a cleptomania ou a piromania.
Recentemente foi redefinido como transtorno viciante ou obsessivo-compulsivo, apesar de não estar incluído nos manuais de referência de diagnóstico de saúde mental.
Sem dúvida que a perda de controlo sobre as compras, que persiste apesar das graves consequências para o consumidor, é real. No entanto, os limites que separam os consumidores comuns daqueles que compram de forma “patológica” não são claros e a sua delimitação diagnóstica arbitrária perpetua o mito de que a cura será mais fácil com tratamentos psicofarmacológicos.
Ou seja, contribui para a medicalização de mais um aspecto do cotidiano, apesar de não existir tratamento psicofarmacológico específico e eficaz para esse problema. Além disso, desvia a atenção do contexto social em que ocorre.
Para muitos consumidores com ou sem problemas, ir às compras funciona como ir à farmácia, como estratégia de enfrentamento para regular o humor. Portanto, as diferenças entre um consumidor e um consumidor viciado parecem ser mais quantitativas do que qualitativas.
A obsessão por compras pode ser um problema social
A perda de controle sobre as compras pode ser considerada não apenas um problema individual, mas um sintoma de um problema social. A expressão do consumismo, que se caracteriza pela compra ou acumulação de bens e serviços não essenciais, constitui o objectivo último da economia para garantir um crescimento constante.
As marcas competem para vender mais e os consumidores competem para comprar mais. Segundo o economista Victor Lebow, o consumismo se tornou um estilo de vida. Alguns dos fatores contextuais que contribuem para explicar a crescente perda de controle sobre as compras são:
1) Maior facilidade de compra online e com cartão de crédito. Isso reduz o atraso entre o impulso ou desejo de comprar e a concretização da compra. Atualmente é possível comprar com apenas um clique.
2) Descontos, ofertas e promoções limitadas por tempo ou unidades favorecem a urgência na compra, pois supervalorizamos produtos difíceis de obter e supostamente escassos.
3) Os meios de comunicação de massa e as redes sociais multiplicam as oportunidades de nos compararmos com pessoas fora da nossa esfera de contato e classe social, aumentando assim os nossos desejos.
4) A publicidade favorece compras que supervalorizam bens materiais desnecessários e gera novas necessidades que são satisfeitas através do consumo materialista.
5) A moda favorece o consumo, desvalorizando rapidamente o valor do que se compra e reforçando o desejo de adquirir novos produtos.
6) O narcisismo converte o consumo compulsivo num ritual de auto-indulgência que visa satisfazer os nossos egos.
7) Os hábitos de consumo são indicadores do nosso status, aceitação e prestígio social. As compras constituem um meio para manter e alcançar o status desejado. Mesmo que isso signifique poupar menos ou endividar-se, porque a impossibilidade de consumir afetaria a nossa estima e reconhecimento social.
Isto é importante porque, paradoxalmente, o consumo é incentivado num contexto de poder de compra cada vez mais desigual: oito pessoas ganham mais de metade da população mundial.
Além disso, os custos decorrentes da maximização das margens de lucro — produzir mais, mais rapidamente e mais barato — estão a tornar-se cada vez mais evidentes, tanto em termos de condições de trabalho precárias como em termos de grave deterioração ambiental.
Assim, embora os níveis de consumo tenham atingido níveis recordes após a pandemia, os problemas de saúde mental também registam números recordes.
Compras em uma sociedade de consumo
O sucesso da Black Friday é um símbolo do sucesso do consumismo como modo de vida na sociedade atual, onde consumimos, substituímos e descartamos a um ritmo cada vez maior e, portanto, insustentável.
O caráter irracional e compulsivo das compras, especialmente durante a Black Friday, seria o resultado esperado dentro do contexto disfuncional da nossa sociedade de consumo, enquanto um diagnóstico simplesmente rotula esse padrão de consumo irracional sem explicar por que ele ocorre.
Como consequência, a redução das taxas de compra compulsiva não pode se limitar ao diagnóstico e tratamento de casos individuais, mas também atua sobre os determinantes sociais do consumo. Não apenas adotando hábitos de consumo éticos, socialmente responsáveis e sustentáveis, mas também padrões de produção que vão além da busca pela maximização dos lucros das empresas privadas.
Precisamos de cidadãos mais informados e participativos na tomada de decisões que os afetam e de menos consumidores passivos, vulneráveis às estratégias de marketing e sem controlo sobre o que, quanto e como consomem e produzem.
*Pablo Ruisoto é professor de Psicologia na Universidade de Navarra
Este artigo foi publicado originalmente no site de notícias acadêmicas A conversa e republicado aqui sob licença Creative Commons. Ler aqui a versão original (em espanhol).
Este relatório foi publicado originalmente em 24 de novembro de 2021.
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