“Quando eu era jovem, havia uma publicação incrível chamada Catálogo da Terra Inteira (‘Catálogo de toda a Terra’, em tradução livre), que foi uma das bíblias da minha geração”, disse Steve Jobs.
A fala ocorreu em seu emblemático discurso na Universidade de Stanford, na Califórnia (EUA), em 2005.
“Foi como se Google em versão impressa, 35 anos antes da chegada do Google”, explicou o reverenciado cofundador da Apple e pioneiro do Informática pessoal. “Era idealista, cheio de ferramentas bem projetadas e grandes ideias.”
A publicação também mudou a vida do eminente médico epidemiologista Larry Brilliant, que leu o livro no final dos anos 1960. Brilliant também é filantropo e especialista em tecnologia.
“A Internetpara nós, naquela época, antes da internet existir, era o Catálogo da Terra Inteira“, disse ele à BBC.
Brilliant estava iniciando sua carreira na medicina em Detroit, Estados Unidos, quando chegou à Califórnia em 1967. Foi arrastado pela onda de ativismo político e pelo “Verão do Amor” daquele ano em São Francisco.
Ele conheceu Steve Jobs aos 19 anos, em um ashram Indiano. Os dois se tornaram amigos para o resto da vida.
Brilliant foi detido junto com Martin Luther King enquanto marchava em defesa dos direitos civis. E também ajudou a Organização Mundial da Saúde (OMS) a erradicar a varíola.
Por toda parte ao seu redor, as pessoas falavam de revolução e os hippies experimentavam a vida comunitária. Mas havia um grande problema, como detectou o ícone da contracultura da época, Stewart Brand.
Brand vivia numa comunidade cuja aspiração era “reinventar a civilização, que era corajosa e admirável”, lembrou, em entrevista ao Victoria & Albert Museum de Londres. Mas ninguém “sabia fazer nada, cultivar um jardim ou construir uma casa… absolutamente nada”.
Brand queria ajudar esses hippies idealistas.
“Por ter formação como cientista, minha perspectiva foi tentar dar a esse movimento respeito pelo fazer”, diz.
‘Somos como deuses’
Brand passou anos viajando pelos Estados Unidos coletando informações que poderiam ajudar essas comunidades. E ela reuniu todas essas informações em um livro escrito à máquina de escrever e encadernado com cola e tesoura.
Ó Catálogo da Terra Inteira Era parte manual de instruções e parte enciclopédia de contracultura.
Além do subtítulo “acesso a ferramentas”, a capa trazia uma imagem da Terra, fruto de uma campanha do próprio Brand em 1966. Ele queria que a NASA publicasse uma foto de todo o planeta, visto do espaço.
Abrindo o livro, sua introdução começava dizendo: “Somos como deuses e é melhor nos acostumarmos com isso”.
Seguiu-se uma coleção de resenhas, guias práticos e manuais sobre o libertarianismo anárquico, análises culturais e comentários sarcásticos, todos impressos em páginas de conteúdo denso.
E por que esse livro foi tão importante?
“Era importante porque não tínhamos internet”, explica Brilliant. “Não tínhamos acesso aos grandes livros. Não tínhamos acesso a coisas fora da nossa comunidade local. Não tínhamos contato com tantas pessoas.”
“O catálogo nos uniu e foi essencialmente um guia do consumidor sobre as melhores ferramentas para viver, capacitar-se e fazer parte de algo. Se você quisesse saber qual era o melhor canivete suíço ou qual era a melhor ferramenta para cavar latrinas, se Se você ficasse muito tempo na floresta, consultaria o livro.”
Brilliant também disse: “Era como o Google, mas sem a parte do mecanismo de busca, então era preciso revisá-lo com cuidado”.
O coletivo artístico Gray Area de São Francisco (EUA), juntamente com a organização cultural Long Now Foundation e o Internet Archive, colocaram recentemente quase todas as edições do catálogo no site wholeearth.info.
A publicação é creditada por reunir o movimento hippie da década de 1960 com a revolução informática das décadas de 1970 e 80 – o casamento da contracultura e da cibercultura.
Portanto, para uma geração de pessoas que cresceram na Califórnia na década de 1960 e que se tornariam os pioneiros da computação moderna, este foi o livro mais importante que já leram.
A sua mensagem ficou gravada na mente de pessoas como Jobs: não seriam protestos, nem política, nem lobby – o que mudaria o mundo seria o acesso à informação.
Naquela época, a ideia de que informações poderiam ser divulgadas para capacitar as pessoas era revolucionária. Mas quando Jobs trouxe o primeiro computador pessoal para o mercado de consumo em 1984, ele disse à Brilliant que se tratava da nova contracultura.
“Certa vez, perguntei-lhe, brincando, se, ao entrar no mundo dos computadores, ele estaria abandonando os valores que tínhamos nas décadas de 1960 e 70, o movimento pela igualdade”, lembra Brilliant.
“Ele respondeu: ‘Enquanto muitas pessoas levantam os punhos e gritam ‘poder ao povo’, eu desenvolvo um Apple [ou, naquela época, um Macintosh] e coloque-os em seus escritórios a um preço acessível. Então, estou literalmente dando poder às pessoas”, disse ela. “Ele realmente acreditava nisso”.
O poço
Naquela época, o idealismo hippie já havia desaparecido. Mas Brilliant questionou se as novas e estranhas máquinas que Jobs e outros pioneiros estavam desenvolvendo seriam a peça que faltava na visão de Stewart Brand.
Ó Catálogo da Terra Inteira só poderia atingir um número limitado de pessoas. E se os computadores pudessem conectar-nos a todos, oferecer acesso a ferramentas e transformar-nos em deuses?
Brilliant então ligou para Brand. No início, ele duvidou.
“Era um negócio e nenhum de nós jamais administrou um negócio”, disse ele. “Mas, durante um almoço, surgiu a ideia de reunir pessoas que tinham ficado fascinadas pelo catálogo online.”
Brilliant ficou intrigado com o que viu nas poucas comunidades virtuais que existiam naquela época.
“Algumas dessas primeiras conversas foram mágicas”, lembra ele. “As pessoas se conheciam e não sabiam se a outra pessoa com quem conversavam era negra ou branca, homem ou mulher, alta ou baixa, americana ou estrangeira…”
“Foi como disse Martin Luther King – que as pessoas seriam conhecidas não pela cor da pele, mas pelo conteúdo do seu caráter. Isso acontece quando você não consegue ver a outra pessoa.”
Foi assim que foi criado O poço (o poço, em tradução livre). Era a sigla em inglês para Link Eletrônico da Terra Inteira (Link eletrônico de toda a terra, em tradução livre), irmão gêmeo do livro de Brand, em formato digital.
Chamado à tolice
Em meados da década de 1990, The Well havia se tornado o lugar mais importante da internet.
Quase ninguém estava online naquela época, mas as poucas pessoas que estavam online sabiam sobre o The Well.
“Tornou-se imediatamente um lugar onde você poderia ir se quisesse ter uma conversa interessante”, lembra Brilliant.
“Tivemos muita sorte porque [a banda de rock] O Grateful Dead fazia parte do nosso mundo, já que a certa altura 30 a 40% da nossa renda vinha de [seus fãs] Deadheads tentando conseguir ingressos”, brinca.
The Well reuniu hackers, hippies e escritores de toda a área da baía de São Francisco. Eles conversaram online sobre tudo, desde tecnologia e política até o sentido da vida.
Depois de se conhecerem online, acabaram organizando festas – um primeiro sinal de que os mundos real e virtual poderiam se fundir.
“Ao contrário do Facebook, nos conhecemos online antes de nos conhecermos pessoalmente”, diz o escritor Howard Rheingold.
Ele foi um membro influente do The Well e cunhou o termo comunidade virtual.
“Muitas comunicações pessoais transformaram-se em relacionamentos. Pessoas se conheceram e se casaram, casamentos terminaram, pessoas receberam apoio quando ficaram doentes, receberam ajuda quando alguém morreu”, disse Rheingold ao jornalista da BBC Rory Cellan-Jones em 2011.
O site e o livro compartilhavam uma visão de mundo radical.
As antigas hierarquias controlavam as informações. Poderosos magnatas da televisão e dos jornais decidiam o que as pessoas comuns liam e viam.
O conhecimento estava trancado em velhas bibliotecas empoeiradas. Pessoas de fora do bairro eram consideradas alienígenas.
O livro de Brand pretendia mudar tudo isso – e a Internet completaria a sua missão.
Para muitos, The Well é a primeira rede social do mundo, ancestral direto do Facebook, Twitter, Instagram e TikTok.
Não foi apenas uma tecnologia, mas uma revolução social, construída sobre uma ideia maluca: a de que deveríamos ter acesso a tudo e a todos, o tempo todo.
O livro de papel deixou de ser publicado em 1972. A capa da última edição trazia uma fotografia tirada pela missão Apollo 4, com a Terra parcialmente na sombra.
Na contracapa da publicação estava a mensagem que Steve Jobs disse no final de sua palestra em Stanford: “Permaneça faminto. Permaneça tolo” (Fique com fome. Continue sendo tolo, em tradução livre).
“Sempre quis isso para mim”, disse ele.
Ouça no site Sons da BBC (em inglês) o episódio “Somos como Deuses”da série BBC Radio 4 “Os porteiros”, que deu origem a este relatório. A série é de autoria do escritor de tecnologia Jamie Bartlett e produzida por Caitlin Smith.
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