Num marco histórico para a integração económica global, o Mercosul e a União Europeia assinaram esta sexta-feira um acordo de livre comércio, após 25 anos de negociações. O anúncio ocorreu durante a cúpula do Mercosul em Montevidéu, com a presença de líderes sul-americanos e da presidente do Conselho Europeu, Ursula von der Leyen.
O objetivo do acordo é facilitar o comércio entre os dois blocos, que têm um PIB (Produto Interno Bruto) combinado de US$ 22 trilhões. O potencial é atingir 718 milhões de consumidores. No caso do Brasil, o pacto poderá aumentar o PIB em 0,5% ao ano, segundo projeções do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).
O acordo, porém, ainda não foi assinado. Precisa percorrer um longo caminho de validação em ambos os blocos económicos (ver arte) e enfrenta resistência de países europeus, como França e Itália.
Na UE, a aprovação passa pelo Conselho da União Europeia e pelo Parlamento Europeu, que reúne todos os países do grupo. Esta etapa é avaliada como a mais desafiadora, pois depende do consenso da maioria qualificada do bloco. O pacto deve ser aprovado por pelo menos 15 dos 27 membros da União Europeia, representando 65% da população do bloco económico, além de uma maioria simples no Parlamento Europeu.
Em comunicado, a União Europeia afirmou que o fim das negociações sobre os termos constitui apenas o “primeiro passo para a conclusão do acordo”. A França, um país que protestou contra o acordo, trabalhou com outros países para bloquear o acordo.
Em discurso na cúpula, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva enfatizou as mudanças nas negociações que possibilitaram o fechamento do pacto. “O acordo que finalizamos hoje é muito diferente daquele anunciado em 2019. As condições que herdamos eram inaceitáveis. Era preciso incorporar no acordo questões de relevância para o Mercosul”, destacou. “Conseguimos preservar nossos interesses nas compras governamentais, o que nos permitirá implementar políticas públicas em áreas como saúde, agricultura familiar, ciência e tecnologia”.
As negociações entre o Mercosul e a União Europeia enfrentaram obstáculos, como disputas sobre tarifas agrícolas, questões ambientais e barreiras regulatórias. Segundo Lula, a versão final do acordo reflete avanços significativos para garantir o equilíbrio nas relações comerciais e o respeito às necessidades dos países do bloco sul-americano.
“Foi um trabalho árduo, mas conseguimos garantir que as cláusulas do tratado reflectissem os princípios do desenvolvimento sustentável e da equidade comercial”, destacou. Afirmou também que o pacto será benéfico para a competitividade das economias do Mercosul e para a criação de empregos nos países membros.
“A União Europeia e o Mercosul criaram uma das maiores alianças comerciais e de investimento que o mundo já viu. Estamos formando um mercado de mais de 700 milhões de consumidores”, destacou Ursula Von der Leyen.
No Palácio do Planalto, o vice-presidente Geraldo Alckmin afirmou que o acordo entre os blocos econômicos representará um grande avanço na economia brasileira. Segundo ele, as exportações do Brasil para a UE poderão crescer 6,7% na agricultura, 14,8% nos serviços e 26,6% na indústria transformadora.
“Estamos falando de 27 países da União Europeia, os mais ricos do mundo, há muitas oportunidades. Pode ajudar a fazer crescer o PIB (Produto Interno Bruto) do Brasil, crescer as exportações brasileiras, a renda e o emprego, e também ajudar a reduzir a inflação . Então, é uma agenda extremamente positiva e, depois de anos e anos de negociação, finalmente comemora-se o anúncio desse acordo”, disse Alckmin, também ministro do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços.
Resistências
A ministra francesa do Comércio Exterior, Sophie Primas, disse que o país lutaria contra a conclusão. “O que está acontecendo em Montevidéu não é a assinatura do acordo, mas a conclusão política da negociação. Isto não vincula os Estados-membros”, escreveu ele em sua conta na rede social X. “A França lutará em cada passo do ao lado dos Estados-membros que partilham a sua visão.”
Em Montevidéu, Ursula Von der Leyen mencionou a resistência francesa. Ela enviou uma mensagem aos agricultores do país europeu que protestam contra o acordo. “Aos nossos agricultores: ouvimos as vossas preocupações e estamos a agir de acordo com elas”, disse ele.
Até no Mercosul há quem discorde. Caso do presidente da Argentina, Javier Milei. “O Mercosul, que nasceu com a ideia de aprofundar nossos laços comerciais, tornou-se uma prisão, que não permite que seus países-membros aproveitem suas vantagens comparativas e potencial exportador”, disse ele, que assumiu o comando do Mercosul cimeira para a reunião do bloco no próximo ano.
O presidente argentino tem representado um obstáculo nos acordos internacionais, como foi o caso do G20, em que resistiu até ao último dia a aderir à Aliança Global contra a Fome e a Pobreza e também a assinar a declaração dos chefes de Estado.
Porém, especialistas consultados pelo Correio analisaram que o interesse comercial, no acordo entre blocos econômicos, será maior. “Acho que o risco de paralisar o acordo com a União Europeia por causa da Argentina é baixo. A agricultura argentina, assim como a brasileira, está muito feliz com a conclusão deste acordo”, acredita o cientista político Leandro Consentino.
“Agora existe uma dificuldade inerente ao Mercosul com a Argentina. Milei é um crítico muito forte do arranjo que o Mercosul se tornou devido à tarifa externa comum, porque todas as exportações e acordos argentinos precisam passar pelo escrutínio do Mercosul. Então, nesse sentido, internamente, a questão do Mercosul poderá sofrer algumas dificuldades. O acordo em si, acho que terá adversários maiores”, acrescentou o especialista.
Protagonismo
Especialista em direito internacional, Mariana Cofferri avalia que a aprovação do acordo, neste momento, traz um papel de peso ao Brasil. “O anúncio do acordo Mercosul e UE traz ao Brasil uma vitória no campo da política externa internacional, especialmente diante do cenário do novo protagonismo do Brasil. O Acordo promove a cooperação política, ambiental e macrorregional. Outro tema polêmico que aparece no acordo, que se alinha ao discurso internacional brasileiro, é a cooperação na governança global”, comenta.
Segundo Marcelo Godke, sócio do Godke Advogados e especialista em direito empresarial internacional, os tratados costumam gerar duas grandes consequências. “Em primeiro lugar, a redução dos impostos de importação e outras barreiras não tarifárias permitem a entrada no mercado de produtos de países mais competitivos, o que pode levar à perda de empregos em setores menos competitivos”, afirma. No entanto — acrescenta — nas áreas onde um país é mais competitivo, estes acordos permitem o acesso a mercados antes inviáveis, favorecendo as exportações e reduzindo custos, o que aumenta a competitividade.
“Embora possa haver impactos negativos ocasionais, tais como perdas de emprego em determinados sectores, a liberalização do comércio resulta frequentemente no crescimento económico global. Contudo, sectores com forte influência política, como a agricultura em França, podem gerar resistência a estes acordos, dificultando as negociações em bloco. É por isso que os Estados Unidos, por exemplo, preferem negociações bilaterais, que geralmente oferecem maior sucesso”, explica Godke.
A negociação entre blocos é mais complexa e muitas vezes resulta em acordos abaixo do esperado. “A França, como membro da União Europeia, pode, em teoria, bloquear o progresso em negociações cruciais entre blocos, mesmo quando o benefício potencial é enorme, abrangendo mais de 700 milhões de pessoas e biliões de PIB.”
O advogado acredita que, embora setores específicos sejam prejudicados, os benefícios gerais tendem a superar os prejuízos. “Os acordos de comércio livre negociados bilateralmente são geralmente mais eficazes e mais rápidos de implementar do que aqueles entre blocos, que podem levar décadas a serem assinados e postos em prática. Considero este acordo extremamente importante. Demorou muito, muito trabalho para serem implementados, foi preciso ver esses acordos efetivamente assinados e implementados”, finaliza.
Para Marcelo Vitali, diretor da How2Go, o pacto representa um marco para empresas e consumidores. “Embora ainda dependamos da aprovação do Parlamento Europeu e de outros procedimentos internos, há optimismo no sector privado quanto aos benefícios que este tratado pode proporcionar”, afirmou. “Os consumidores terão acesso a produtos de maior qualidade e a preços mais competitivos, ao mesmo tempo que se abrem novas oportunidades económicas para ambas as partes. Estamos confiantes de que, dentro de três ou quatro anos, veremos os frutos dessa integração se concretizarem”, destaca.
Segundo Vitali, o tratado simboliza mais do que uma parceria comercial: é uma oportunidade para fortalecer a cooperação internacional e abrir novas perspectivas económicas para empresas e consumidores.
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