Outro dia o cineasta André Carvalheira deparou-se com um filme que realizou em 1998, numa única cópia em formato mini DV, SD. Para assistir ao filme, você precisa projetá-lo no filme. Se não for esse o caso, a imagem ficará péssima. Carvalheira percebeu então a fragilidade da memória do cinema. Não que isso não tenha acontecido antes, mas cada vez que a ideia de preservação vem à cabeça, uma espécie de vazio se abre diante dos olhos do cineasta. Vladimir Carvalho tinha o mesmo medo e foi um pouco disso que o motivou a criar o acervo Cine Memória, um acervo de 5 mil itens, entre jornais, revistas, fotografias, filmes, máquinas, câmeras e até a moviola usada por Glauber Rocha em Terra em transe. É um acervo robusto, capaz de contar a história do cinema de Brasília e do Brasil. “Quando penso em preservação concordo muito com a ideia do Vladimir, parece que precisamos envelhecer para começar a nos preocupar com a preservação, com a memória. E não deveria ser. Não temos muita cultura de memória no Brasil, é muito difícil. E não só no cinema, em tantas áreas”, afirma Carvalheira. “No cinema é especialmente forte porque é um material que se deteriora de forma relativamente rápida. É preciso ter embalagens específicas, há uma série de regras e cuidados.”
Vladimir guardou o acervo numa casa do W3 até falecer, em 24 de outubro de 2024, na esperança de poder criar uma fundação, um museu e, quem sabe, uma cinemateca capaz de acolher o público para apresentar os tesouros de cinema nacional. Foi um sonho que a comunidade cinematográfica de Brasília abraça e, agora, exige do poder público um destino adequado para o acervo. “É uma iniciativa muito difícil de manter através de ações individuais como a que Vladimir fazia sozinho. Exige e depende da ação estatal. O Estado tem que usar os seus recursos e estruturas para preservar isso, porque as pessoas estão a sair. E projetos importantes não podem morrer junto com as pessoas, precisam continuar”, afirma Guilherme Bacalhao, diretor do Pacto da Violaque participou da Mostra Competitiva do Festival de Cinema Brasileiro de Brasília.
Para o diretor Rafael Ribeiro Gontijo, do curta Inflamávelque conta a história de um personagem dos atentados de 01/08, o Cine Memória é um repositório do passado, mas também do futuro e, em prol da memória nacional, precisa ser preservado. “É fundamental, precisamos preservar a memória. Um povo que não olha para o passado não olha para o futuro”, afirma. “E, sendo capital do país, é muito importante ter aqui uma cinemateca. A memória está se perdendo, não temos mais oralidade, o que temos é o audiovisual como guardião dessa memória. Às vezes temos dificuldades com isso quando fazemos filmes.”
Atualmente Rafael trabalha em um documentário sobre o surgimento da capoeira na década de 1960 em Brasília e se depara com a enorme dificuldade de encontrar material de arquivo de qualidade. “Tudo é horrível, o som é horrível e você mal consegue reconhecer as pessoas. E as pessoas desaparecem, porque morrem, depois morrem os descendentes, logo ninguém sabe mais de nada. Coleções como a de Vladimir são muito importantes para preservarmos a memória das pessoas que fizeram a história da nossa cidade e do nosso país”, acredita.
Membro da comissão de seleção de curtas da Mostra Competitiva do Festival de Cinema de Brasília, crítica e pesquisadora, a paraense Lorenna Montenegro lembra que o acervo de Vladimir Carvalho é também um retrato da história do cinema no Brasil. “Ele traz toda a sua trajetória como cineasta, mas também como trabalhador do cinema desde a juventude e como isso repercute em Brasília como cidade do cinema”, explica. Ela lembra que a cidade abriga o festival mais antigo do Brasil e o mais importante e relevante. Portanto, preservar a memória do cinema brasileiro é uma questão tão política quanto as que o festival tem enfrentado ao longo dos anos. “É importante compreender a luta contra a censura, os governos e as inconsistências da nossa democracia. É preciso entender a preservação audiovisual não apenas como algo que tem a ver com o passado, mas como um passado que constrói uma ideia de futuro”, afirma Lorenna.
Diretora e montadora audiovisual, formada em Brasília, Marisa Mendonça se sente à mercê do tempo na hora de preservar a memória do cinema. Ela aponta o descaso com as políticas públicas na área e lembra os incêndios na Cinemateca Brasileira em São Paulo, em 2021, e no Museu Nacional, no Rio de Janeiro, em 2018. “No Brasil, a capacidade de destruição é impressionante . E Vladimir tinha essa coisa de sempre trabalhar pela memória. Velhos conterrâneos de guerra por si só já é uma lembrança muito forte da nossa cidade, portanto é uma luta que precisa ser travada todos os dias. É fundamental”, afirma. “Precisamos de espaços para guardar esse acervo, porque hoje em dia as coisas são muito inconstantes, tudo pode desmoronar tão facilmente, desaparecer da noite para o dia.”
O ator e produtor Wellington Abreu, que está no filme Pacto da Viola e atuou em diversas produções brasilienses, inclusive as de Afonso Brazza, é contundente ao exigir do poder público uma solução para o Cine Memória. Ele até sugere que o acervo seja tombado como patrimônio, mas lembra que isso aconteceu com o acervo de Dulcina de Moraes e não evitou que os objetos se deteriorassem. “O estado precisa cumprir, no mínimo, a sua função de criar um espaço para o patrimônio material e imaterial do DF. Vemos Dulcina de Moraes completamente abandonada, não tem nenhuma instituição que cuide minimamente disso. E tem essa coleção do Vladimir, que estava dentro da casa dele. O problema é muito sério. Se as coleções de Dulcina são preocupantes, imaginem as de Vladimir, que são filmes que podem se perder num piscar de olhos”, lamenta. “São heranças e histórias que precisam ser preservadas para o resto das nossas vidas, para as gerações futuras, que precisam ter acesso ao que Vladimir nos contou sobre esta cidade. O DF tem recursos para isso, tem uma FAC que poderia ser voltada para isso. A CLDF precisa se conscientizar, os deputados precisam entender que precisamos preservar esse patrimônio.”
A jornalista Marcia Zarur, que esteve com Vladimir Carvalho pouco antes da morte do cineasta e acompanhou a luta pela preservação do Cine Memória, afirma que o coletivo Maria Cobogó continuará trabalhando para encontrar um local para o acervo. “Estamos ao lado do Vladimir há dois anos e vamos dar continuidade àquela que foi a maior luta dele”, lembra. “Temos uma reunião marcada com Leandro Grass, presidente do Iphan, no próximo mês. E temos a promessa do secretário de cultura, Cláudio Abrantes, de que trabalhará junto com o Iphan para encontrar uma solução.”
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