Renata Issa, de Curitiba, e Marcela Jacques, de Recife, estão entre os cerca de 3,5 mil brasileiros que vivem em Síria atualmente, segundo estimativas do Ministério das Relações Exteriores.
Eles se mudaram para o país antes do início da guerra civil que começou em 2011 e permaneceram durante os anos mais violentos de combates.
Agora, depois que as forças rebeldes tomaram a capital Damasco e derrubar o presidente Bashar al-Assad — que fugiu para a Rússia, onde recebeu asilo do governo —, estão preocupados com a indefinição do governo e com o futuro do país nas mãos dos insurgentes.
Mesmo assim, dizem estar aliviados com o fim do regime repressivo e não têm planos de voltar a morar no Brasil.
“Ainda não acho que a Síria seja um bom lugar para os meus filhos crescerem”, reflete Marcela, que se mudou há 16 anos depois de se apaixonar pelo marido sírio.
“Mas mesmo assim, acredito que agora a situação vai melhorar – especialmente porque é impossível piorar”.
Assad estava no poder desde 2000, após a morte do seu pai Hafez, que governou o país durante 29 anos com mão de ferro.
Ambos mantiveram uma política rigidamente controlada e repressiva, na qual a oposição não era tolerada.
O líder deposto é lembrado como o homem que reprimiu violentamente os protestos pacíficos contra o seu regime em 2011, o que levou a uma guerra civil.
Mais de meio milhão de pessoas foram mortas e outros 6 milhões tornaram-se refugiados.
Nos últimos dias, multidões saíram às ruas da capital para celebrar a mudança de governo.
Mas enquanto alguns sírios estão eufóricos com a queda de Assad, outros estão mais cautelosos.
Analistas prevêem um período de incerteza com a liderança do Grupo militante islâmico Hayat Tahrir al-Sham (HTS), receios de uma total disparidade de poder e de um potencial aumento da violência entre as facções que hoje disputam o controlo da Síria.
No Brasil, o Ministério das Relações Exteriores manifestou preocupação com a escalada dos conflitos na Síria e aconselhou os cidadãos brasileiros a deixarem o país.
O Itamaraty também decidiu evacuar a embaixada em Damasco.
Em nota, o ministério disse que “continua monitorando a situação dos brasileiros na Síria e prestando-lhes assistência consular adequada, remotamente, a partir de Beirute (capital do vizinho Líbano)”.
‘Pensamos que não sobraria nada’
À BBC News Brasil, Renata Issa e Marcela Jacques relataram momentos de insegurança após as primeiras notícias do avanço dos rebeldes em direção a Damasco.
“Quando soubemos que os rebeldes se aproximavam, saímos correndo e fomos para o interior, que é mais seguro”, diz Renata, que mora com o marido e os dois filhos em Homs, uma das cidades tomadas pelos rebeldes durante a ofensiva contra o governo. de Assad.
A dentista de 44 anos diz ter visto muito desespero, com muitas pessoas também tentando fugir.
“Todo mundo imaginava que com a entrada dos rebeldes não sobraria nada na cidade”, diz ela, que é filha de pais sírios e está no país desde 2010.
“Normalmente demoramos menos de uma hora para chegar à zona serrana, mas desta vez demoramos cinco horas por causa do trânsito”, continua Renata.
“Vimos famílias transportando coisas em seus carros e veículos tão lotados que algumas pessoas dirigiam com as portas abertas e metade do corpo para fora”.
Lá dentro, diz o brasileiro, o clima era tranquilo. Porém, em algumas cidades do país, como Hama, foram registrados intensos confrontos e destruições.
Após a confirmação da deposição do regime, porém, as ruas foram tomadas por cidadãos que comemoravam o fim do governo Assad.
“Recebi vídeos de pessoas fazendo festas, estátuas e cartazes com fotos do presidente sendo derrubados. Aos poucos, tudo está voltando ao normal, mesmo com as lojas abrindo novamente”, diz Renata, que tem planos de voltar a morar com ela. casa em Homs no final desta semana.
Ela também se diz esperançosa, apesar da indefinição sobre o futuro do país. “Sempre vivemos oprimidos e com medo”, diz ele.
Renata faz parte da minoria cristã que vive na Síria, país de maioria muçulmana, e, apesar de nunca ter sofrido nenhum tipo de discriminação, diz que sempre toma cuidado redobrado.
“A transição será complicada e pode demorar um pouco para que tudo fique bem, mas tenho esperança de que a vida melhore agora.”
Após a deposição de Assad, o primeiro-ministro do seu governo, Mohammed al-Jalali, disse estar pronto para apoiar a continuidade da governação no país com uma transição pacífica.
O líder do grupo vitorioso HTS, Abu Mohammed al-Jawlani, apelou aos seus homens e a todas as facções do país para manterem o respeito mútuo.
Depois dos seus seguidores terem derrubado o regime, ele é o mais próximo que a Síria tem hoje de um líder de facto.
Na terça-feira (12/10), Mohammed al-Bashir, o líder rebelde que ajudou a derrubar Assad, foi nomeado primeiro-ministro interino do país, segundo a mídia local, e deve permanecer no cargo até 1º de março para comandar o governo de transição. .
Mas o país tem dezenas de grupos armados que não concordam necessariamente com o HTS, o que, segundo analistas, pode comprometer a estabilidade e levar a lutas pelo poder em diferentes regiões do país.
Além disso, há quem expresse preocupação com o passado de Al-Jawlani e do HTS, que é classificado como jihadista e terrorista pelos governos ocidentais.
Nos últimos anos, o líder rebelde tentou apresentar uma imagem mais moderada ao mundo, mas foi acusado de cometer abusos dos direitos humanos.
Grupos cristãos internacionais expressaram preocupação com o futuro da minoria num país controlado pelo grupo islâmico, enquanto líderes religiosos internos afirmaram ter recebido garantias de que a sua segurança seria preservada.
Questionada sobre a possibilidade de um novo governo controlado pelas forças rebeldes se tornar mais repressivo, Renata diz que ela e a família têm medo da instabilidade, mas estão confiantes numa resolução pacífica.
A brasileira diz que as declarações sobre o respeito pela liberdade religiosa e pelas mulheres proferidas por Abu Mohammed al-Jawlani e outros líderes rebeldes desde que assumiu o poder deram-lhe esperança de que não haverá maiores restrições de direitos no país.
“Recebi uma mensagem do padre da minha congregação dizendo que podemos manter a calma, que eles não farão nada aos cristãos”.
‘Eu sou uma exceção’
Marcela Jacques, 42 anos, também percebe um sentimento crescente de confiança no progresso entre as pessoas mais próximas.
“Percebo um sentimento de esperança de que este novo governo traga mais dignidade ao povo sírio”, diz a brasileira recifense que mora com o marido e dois filhos na capital Damasco.
Segundo Marcela, a deterioração da economia, a inflação e a perda de poder de compra que atingiram o país nos últimos anos dificultaram muito a vida de grande parte da população.
Após 14 anos de conflito na Síria, cerca de 90% vivem na pobreza. Segundo as Nações Unidas, 16,7 milhões de pessoas necessitam atualmente de assistência humanitária e proteção no país.
“Graças a Deus tenho qualidade de vida aqui, mas sou uma exceção. A grande realidade aqui é que as pessoas não têm acesso ao básico”, diz ela, que precisa recorrer ao mercado negro para comprar produtos importados do exterior e cilindros de gás. de gás.
Marcela conta que o marido tem um emprego estável que paga o suficiente para que eles tenham acesso a privilégios como painel solar e baterias para abastecer a casa com energia nos horários em que o fornecimento de energia elétrica é cortado em toda a cidade.
“Aqui em Damasco só recebemos energia durante duas das 24 horas do dia”, afirma.
No inverno, o aquecimento das casas é abastecido com gasóleo que, segundo Marcela, “é muito caro”.
“A população não tem acesso a esses privilégios. Tudo era muito caro —diesel, gasolina, comida”, lamenta.
“O povo ficou revoltado, mas não teve coragem de reclamar por medo de perseguição. Eu mesmo jamais daria entrevista ao outro governo no poder, porque não teria como falar a verdade”, afirma. , sobre as restrições enfrentadas durante o comando de Assad.
“Agora me sinto mais livre.”
Ela, que é muçulmana, também diz estar confiante no compromisso com os direitos humanos e a liberdade religiosa declarados pelos rebeldes do HTS.
A brasileira, porém, tem planos de se mudar com a família para os Estados Unidos em 2025.
Segundo Marcela, as crianças merecem crescer num país mais estável e com menos violência.
“Ainda é cedo para dizer, mas esperamos que isso mude um pouco com o novo governo”, afirma.
Violência e guerra
Marcela conta que a mudança da família já estava planejada antes da mudança de governo.
A vontade de sair do país foi alimentada principalmente pela violência causada pelas disputas internas.
“Fomos algumas vezes ao Brasil desde que me mudei, mas voltamos e acabamos ficando”, conta a brasileira, que se mudou após conhecer o marido pela internet.
Mas, segundo Marcela, o seu cunhado foi detido injustamente por forças ligadas ao governo e morto sob custódia — o que aumentou o seu medo de permanecer na Síria.
“Nos piores momentos da guerra, todos os dias víamos aviões sobrevoando a cidade, tanques nas ruas, morteiros sendo disparados”, lembra.
“Morávamos em um bairro que começou a ser atacado com frequência e tivemos que nos mudar para a periferia da capital”.
Agora, a família aguarda a conclusão do processo de imigração para recomeçar a vida em um novo país.
Renata não vê mudança na Síria no seu futuro. Formada em odontologia no Brasil, revalidou o diploma e abriu seu próprio consultório em Homs.
Ela e o marido sírio, que conheceu quando ainda morava no Brasil, têm dois filhos. O mais novo estuda em escola particular, enquanto o mais novo estuda medicina.
“É difícil abrir mão de tudo o que construímos aqui”, diz ele.
“Muitas pessoas aqui não entendem a nossa decisão, porque o sonho de muitos sírios é conseguir passaporte estrangeiro para se mudar. Mas aqui temos uma vida estável. Sempre pensamos que a situação iria melhorar logo e vivemos.”
Segundo Renata, sua família consegue viver bem com seu salário e o do marido, que é engenheiro —ao contrário de grande parte da população, que enfrenta uma realidade difícil.
A curitibana diz que passou por momentos de muita insegurança e medo durante os anos de maior violência durante a guerra civil. Mesmo assim, ele decidiu ficar. “Só decidimos sair daqui como último recurso, se as coisas realmente transbordassem”, diz ele.
Renata conta que sua família se mudou para uma região mais segura do país e adquiriu uma casa no campo, onde poderiam se abrir em momentos de maior perigo.
“Passamos por momentos difíceis, mas nunca tivemos perdas materiais, ao contrário de pessoas que perderam suas casas e familiares”, afirma.
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