Gigante da consultoria de gestão e negócios com atuação em quatro continentes, a Alvarez & Marsal (A&M) é a primeira empresa global na área de capital de investimento a aderir à reconstrução de Porto Alegre depois enchente.
A Prefeitura da capital, responsável pela contratação da A&M, destaca a experiência da empresa em responder aos efeitos da crise Furacão Katrinaem 2005, em NÓS. Foi precisamente este episódio, porém, que suscitou mais críticas à empresa, associando-a a políticas de desregulamentação e privatização dos serviços públicos. Esta receita foi chamada de “capitalismo de desastre” pela escritora canadense de esquerda Naomi Klein.
No Brasil, onde está presente desde 2004, a empresa está sujeita a considerações semelhantes, antes mesmo de apresentar qualquer proposta, como é o caso de Porto Alegre. A&M afirma que o seu objectivo é diagnosticar a situação das infra-estruturas locais e propor formas de financiar a reconstrução. A empresa garante que segue rigorosamente os termos dos contratos com os clientes e as práticas de mercado.
Porto Alegre, e também grande parte do Estado do Rio Grande do Sul, foram atingidos por fortes temporais nas últimas semanas. O Lago Guaíba atingiu nível recorde de 5,35 metros no dia 5. E a chuva voltou à região metropolitana da capital na quinta-feira (23/5). Especialistas projetam volume acima do nível de enchente até o início de junho.
Mais de 30 técnicos da A&M trabalham desde segunda-feira (13/5) para desenvolver um plano de recuperação da infraestrutura da cidade. O estudo deve ser concluído em 30 dias. No total, a consultoria terá duração de 60 dias, de forma pro bono (sem custo para o mutuário, no caso, o município).
A empresa também assinou contrato para prestação de serviços de consultoria ao governo de Rio Grande do Sul, na mesma modalidade gratuitamente, segundo assessoria do governador Eduardo Leite. A administração estadual anunciou que fará acordos semelhantes com outras consultorias, como McKinsey e EY.
Em Porto Alegre, a obra resultará no que a A&M chama de “plano macro preliminar” para a recuperação da capital. A consultoria da empresa definiu o escopo do trabalho nos seguintes termos: “Calcular o impacto (da enchente) na infraestrutura da cidade para sugerir fontes alternativas de recursos para reconstrução”.
Questionada pela BBC News Brasil sobre os detalhes de seu estudo, a A&M disse que, no momento, concentra seus esforços no diagnóstico e no plano de ação emergencial e, assim que tiver a estrutura do plano, apresentará um cronograma para implementação na Prefeitura.
A Prefeitura pode aceitar ou rejeitar o projeto, mas já decidiu que não contratará a empresa após a conclusão do estudo, segundo o vice-prefeito Ricardo Gomes (sem partido).
Na sexta-feira (17/5), quando foi assinado o contrato entre a Prefeitura e a A&M, a equipe do escritório já havia se reunido com o prefeito, o deputado e representantes das secretarias de Obras e Infraestrutura e de Habitação e Regularização Fundiária e da Secretaria Municipal de Águas. e Departamento de Esgoto (Dmae). Foram planejadas reuniões com as secretarias de Saúde e Educação. Todos os departamentos impactados pela catástrofe realizarão reuniões com consultores.
O projeto incluirá áreas como saneamento, construção civil e outros segmentos da infraestrutura local afetados pela água. A empresa não designou porta-voz em Porto Alegre. Segundo a assessoria de imprensa, a consultoria está em fase de levantamento de informações.
Preservam-se a identidade, área de especialização e origem dos técnicos. Sabe-se apenas que se trata de uma equipa multidisciplinar com diversas nacionalidades, segundo a assessoria de imprensa da A&M.
Ao iniciar um novo projeto, a empresa costuma buscar em seus quadros espalhados por mais de 80 países aqueles com perfil e qualificação mais adequados para cada tarefa específica. Neste momento, por exemplo, uma equipe brasileira de mineração está trabalhando em um projeto na Austrália.
Ao anunciar o contrato, nesta segunda-feira (13/5), o prefeito Sebastião Melo (MDB) disse que o serviço foi oferecido ao município por um dos parceiros da A&M, “do Rio Grande do Sul e de Porto Alegre”. Ao jornal Folha de S.Paulo, ele afirmou nesta quarta-feira (15/5) que foi abordado por um “cidadão deles que mora aqui”. O porta-voz da empresa disse que não divulgará o nome do executivo.
A obra em Porto Alegre será executada pelo braço de capital de infraestrutura da A&M. Esta unidade de negócios, fundada há cinco anos no Brasil, foi renomeada como A&M Infra no ano passado. Hoje é considerada a maior empresa de projetos de capital e infraestrutura do país. Com sede no Brasil, é responsável por mais de 300 projetos supervisionados por 500 profissionais na Europa, Ásia, América do Norte e Oceania.
Fundada em 1983, nos Estados Unidos, pelos executivos Tony Alvarez e Bryan Marsal, a A&M ganhou reputação como consultoria especializada em prestar assistência a grandes conglomerados em dificuldades contábeis e financeiras. A área é conhecida como gerenciamento de reviravolta (em tradução livre, “administração do retorno”).
No Brasil, a A&M ganhou notoriedade ao contratar o ex-ministro da Justiça Sergio Moro em 2020. Moro foi alvo de investigação do Tribunal de Contas da União (TCU) por suposto conflito de interesses em razão do episódio, já que a empresa havia prestado consultoria às empresas investigadas no âmbito da Operação Lava-Jato. Ex-chefe da 13ª Vara Federal de Curitiba, Moro julgou casos relacionados à operação de 2014 a 2018. O ex-ministro e a A&M sustentam que ele não atuou em casos ligados à operação. O processo ainda tramita no TCU.
O prestígio da A&M numa indústria competitiva como a inversão de marcha Isto ficou evidente na crise bancária de 2007. Quando a administração do banco nova-iorquino Lehman Brothers decidiu declarar falência, em 14 de setembro daquele ano, a primeira pessoa para quem o advogado Harvey Miller, responsável pela operação, ligou foi Bryan Marsal. No dia seguinte, foi declarada falência, sob supervisão da A&M. O colapso do Lehman Brothers contribuiu para desencadear a crise financeira global de 2008.
Em 2005, executivos da empresa supervisionavam a reforma da educação pública em Nova Orleans quando a cidade foi atingida pelo furacão Katrina. Em meio aos destroços, técnicos da A&M arriscaram suas vidas para salvar computadores e planilhas em áreas devastadas pelo desastre.
A atuação da empresa no episódio, porém, não está imune a críticas. Professor da Universidade de Illinois, Kenneth Saltman, autor do livro Capitalizando o desastre: tomando e destruindo escolas públicas (Routledge, 2007) – em tradução livre, Capitalizando o desastre: tomar e destruir escolas públicas – afirma na obra que a A&M aproveitou a situação pós-Katrina para promover uma agenda de privatização e elitização das escolas públicas locais.
Saltman afirmou, por e-mail, à BBC News Brasil: “Devido ao histórico da A&M em possibilitar a privatização e destruição de escolas públicas de Nova Orleans e seu envolvimento na demissão em massa de professores e no desmantelamento ilegal de seu sindicato, qualquer pessoa que se preocupe com a educação pública deveriam ficar alarmados e céticos em relação a qualquer conselho que dêem sobre educação em qualquer lugar.” À BBC News Brasil, a A&M afirmou, por meio de sua assessoria, que não tinha o que comentar sobre a opinião de Saltman.
No Brasil, a A&M prestou consultoria para Lojas Americanas e também para a Vale após o rompimento da barragem de Brumadinho, em Minas Gerais.
No Rio Grande do Sul, em 2020, a A&M foi uma das contratadas sem licitação pela Companhia Rio-grandense de Saneamento (Corsan) para fazer avaliação econômico-financeira da estatal, que então estava em processo de ser privatizado.
Em seguida, prestou consultoria ao consórcio Aegea, que licitaria a Corsan como única participante do leilão de venda por R$ 4,1 bilhões.
Em ação popular contra a privatização, o Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias de Purificação e Distribuição de Água e de Esgoto do Estado do Rio Grande do Sul (Sindiágua) argumentou, entre outros pontos, que a legislação estadual e federal exige licitação para contratação de empresas com o objetivo de realizar uma avaliação econômico-financeira das empresas estatais em processo de privatização. Após uma disputa política e jurídica que durou três anos, a privatização da Corsan foi finalizada em 2023, com a transferência da empresa para o consórcio Aegea.
O anúncio do contrato entre a Prefeitura e a A&M provocou críticas. Um grupo de professores da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e de outras instituições propôs em manifesto, entre outras medidas, que o governo do Estado criasse uma fundação de estudos estratégicos responsável “pela geração de estatísticas e pela análises essenciais para a boa condução das políticas públicas”.
O vice-diretor da faculdade, André Moreira Cunha, um dos organizadores do texto, disse ao jornal Zero Hora: “A Alvarez & Marsal é uma empresa de muito prestígio, não questiono isso. a experiência que possui é necessária e suficiente.”
“O Rio Grande do Sul tem muita inteligência a ser usada. Já existe uma saída do Estado e do país. Se não trabalharmos com muita seriedade esse processo pode se aprofundar”, explicou o professor.
O deputado estadual Matheus Gomes (PSOL) afirmou: “Privatizar a reconstrução da capital gaúcha é um erro, mas é pior neste caso pelo histórico desta empresa (A&M)”.
Em nota, o Sindiágua disse que o acordo tem o objetivo oculto de transferir bens públicos para a iniciativa privada: “É fundamental destacar que a empresa contratada não está aqui para reconstruir a cidade, como pode parecer à primeira vista. Pelo contrário, os seus esforços parecem direcionados para preparar o terreno para a privatização do Dmae”. A entidade acusa o presidente da Câmara de “aproveitar a distração da população para fazer avançar uma agenda que poderá ter consequências desastrosas para o futuro da nossa comunidade”.
O presidente do Sindiágua, Arilson Wünsch, também comentou sobre o risco de a contratação pro bono ser utilizada para acessar dados privilegiados da administração pública que poderiam posteriormente ser vendidos a empresas privadas interessadas em fazer negócios com o poder público. “Uma vez que você está lá, uma vez que você contrata uma empresa, uma vez que uma empresa privada está lá trabalhando com qualquer empresa pública, ela começa a ter os dados, começa a ter os números da empresa”, disse ele.
Sobre a afirmação do Sindiágua, a A&M disse que “possui uma unidade de negócios especializada em infraestrutura, formada por uma equipe sólida e com ampla expertise, qualificada para atuar em projetos de capital do setor”. Acrescentou que “segue rigorosamente as cláusulas contratuais e de compliance com seus clientes, bem como os padrões de mercado, com transparência e ética”.
O vice-prefeito Ricardo Gomes disse que o objetivo do acordo com a A&M é “compilar informações (sobre os danos causados pelas enchentes) e estruturar uma estratégia para buscar (reconstrução), seja pública ou privada, evitar a perda de oportunidades de financiamento e que duas fontes orçamentárias são alocados para o mesmo objeto”.
Ele argumenta que alguns hospitais e a maioria das escolas infantis de Porto Alegre já são operados por empresas parceiras e contratadas e que isso não constitui um enfraquecimento da fiscalização do poder público. “O foco está na prestação de um serviço público, e esse serviço já é prestado em parceria com o setor privado há décadas”, sustenta.
Gomes alerta que, em qualquer caso, a definição de como o serviço será prestado cabe ao município e não à consultoria. “O pior que pode acontecer é a consultoria sugerir, num caso ou outro, as vantagens ou desvantagens de um modelo ou outro”, explica.
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