Não sei quem inventou, mas essa narrativa da comida afetuosa da avó está cansando nossos pratos, molhos e ouvidos. Minha avó não é como a sua. E é por isso que essa construção de que comida boa é comida de vovó vai por água abaixo. Minha mãe, por exemplo, aprendeu a cozinhar depois dos 50 anos, e o trivial, cheio de alho e cebola, era crime para a culinária ayurvédica. Ao perpetuar a ideia de que a “comida da vovó” é símbolo de amor e sacrifício, o conceito desvaloriza o esforço e o trabalho invisível dessas mulheres, além de negligenciar o papel que avós, pais ou outras figuras masculinas poderiam ou deveriam desempenhar na criação e alimentação familiar.
Um bolinho de fubá caseiro é apenas um bom bolinho caseiro. Um ensopado, ou um frango ao molho pardo, ou mesmo comidas de panela são apenas pratos quentes cheios de referências. Nos restaurantes do Brasil se espalha essa história (muitas vezes criada só para aquele momento) de que a comida da vovó é a mais descolada e afetuosa do mundo, supervalorizando o carinho das avós que cozinham em detrimento das mães, tias e mulheres solteiras que se tornaram cientistas, políticos, médicos… sempre me pareceu estranho. Para não dizer chato.
Origem do conceito de “comida da vovó”
Boa comida é comida saudável, eu concordo. E talvez seja daí que vem a confusão com a boa comida da vovó. Isso porque após a Segunda Guerra Mundial, com a modernização dos processos industriais, os produtos industrializados ganharam ainda mais espaço nos lares brasileiros. Nas décadas de 1970 e 1980, com a ampliação do poder de compra e a diversificação da indústria alimentícia, os produtos industrializados consolidaram-se no cotidiano da maioria das famílias brasileiras. Industrializado, leia-se ultraprocessado.
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Historicamente, as avós foram as guardiãs das receitas transmitidas oralmente ou pela prática, preservando técnicas e sabores específicos de cada região ou cultura. Esse conhecimento foi passado de geração em geração, reforçando laços familiares e identidades culturais, mas também muitos estereótipos.
O conceito de “comida de vovó”, embora carregado de afeto e nostalgia, pode ser interpretado como uma visão sexista e antiquada ao reforçar os estereótipos de gênero que associam as mulheres, principalmente as avós, ao papel exclusivo de cuidadoras e responsáveis pela alimentação da família.
Por trás da romantização
Esta romantização da “vovó cozinheira” ignora o facto de que, historicamente, as mulheres eram muitas vezes relegadas ao espaço doméstico devido a uma divisão de tarefas imposta, enquanto os homens cuidavam de atividades externas ou consideradas de maior prestígio.
Acho lindos os restaurantes que abraçam essa narrativa da avó caseira, de avental e cozinhando para uma multidão de filhos e netos, e preparando mesas fofas, delicadas e cheias de “carinhos”. Mas conheço avós super carinhosos, carinhosos, que não gostam de cozinhar, não sabem cozinhar.
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Talvez seja hora de ressignificar essa construção de afeto e talvez o legado de mulheres como Bertha Lutz (bióloga, política), Nise da Silveira (psiquiatra) ou Zilda Arns (médica) seja lembrado com carinho, mas sem receitas ou culinárias famosas. Confesso que minha avó era uma cozinheira exemplar, mas às vezes me pergunto se ela não queria ser cientista ou se era feliz. Pense nisso!
Thiago Paes é colunista de turismo e gastronomia. Está nas redes sociais como apresentador da TV @paespelomundo no Travel Box Brazil. Pressione contato@paespelomundo.com.br
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