As consequências da pandemia de covid-19 estão geralmente associadas ao cansaço, ao esquecimento, à taquicardia e à falta de ar. Os anos de reclusão e medo de uma doença desconhecida, porém, deixaram outras marcas intensas, com aumento significativo dos transtornos mentais. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), houve um aumento de 25% na prevalência de ansiedade e depressão em todo o mundo. Estudos também identificaram mais casos de abuso de álcool e suicídios.
“A Covid-19 afetou toda uma geração de pessoas, em todos os níveis”, afirma Khalid Afzal, psiquiatra pediátrico da Universidade de Medicina de Chicago, nos Estados Unidos. Segundo o médico, as tentativas de suicídio e as idas ao pronto-socorro relacionadas ao ato aumentaram significativamente alguns meses após o início da pandemia. No Brasil, um estudo realizado há dois anos pela Fiocruz revelou que, após a primeira onda da doença, houve uma redução de 13% nos casos. No entanto, os autores também encontraram um aumento significativo dependendo da faixa etária e da região do país.
O estudo, publicado em Jornal Internacional de Psiquiatria Socialconstataram que, na região Norte, o excesso de suicídios chegava a 26% entre homens com mais de 60 anos. No Nordeste, o aumento foi de 40% entre as mulheres dessa faixa etária. “Nosso trabalho destaca a importância de tratar o suicídio para além de um problema de saúde individual, pois é um problema com profunda relação com as desigualdades econômicas e o acesso aos serviços sociais e de saúde pública”, revelou o autor do estudo, o epidemiologista Maximiliano Ponte, da Fiocruz Amazônia.
Vulnerável
A pesquisadora observou ainda que os idosos, além de serem a faixa etária com maior fator de risco para suicídio, são os mais vulneráveis à Covid-19. O Norte e o Nordeste foram as regiões brasileiras com maior mortalidade pela doença infecciosa.
“Depois de alguns meses, as pessoas perceberam que a situação não iria mudar tão cedo”, lembra Khalid Afzal. “E quanto mais eles ficavam isolados, mais esse isolamento era agravado por outros fatores de estresse, como preocupações financeiras e medo de morrer. aparentemente, de volta ao normal, o peso da pandemia permanece “É um trauma coletivo, que levará anos para sarar”.
Pesquisas indicam que crianças e adolescentes têm sido particularmente afetados pelas medidas de isolamento. A interrupção de marcos importantes da vida, como as formaturas, foi especialmente traumatizante para os mais jovens, tal como a falta de privacidade e as tensões causadas pelo confinamento das famílias dentro de casa. “Para as crianças, o lar deveria funcionar como um ambiente seguro e acolhedor, mas, em muitos casos, tornou-se um espaço de sobrecarga emocional”, observa a psicanalista e neuropsicóloga Sílvia Oliveira, de Brasília.
Hispânicos
Um estudo publicado na revista Pediatria Acadêmica por pesquisadores do Centro Infantil Johns Hopkins, nos Estados Unidos, descobriram que as taxas de depressão, ansiedade e pensamentos/comportamento suicida aumentaram significativamente durante a pandemia e no período pós-pandemia entre crianças e jovens de 8 a 20 anos. No país norte-americano, o fenómeno afetou especialmente mulheres negras, asiáticas e hispânicas.
“Nossas descobertas mostram que este é um problema real que precisamos abordar em todas as frentes”, diz a primeira autora Laura Prichett, professora assistente de pediatria geral na Faculdade de Medicina da Universidade Johns Hopkins. “É claro que estes últimos anos tiveram um impacto significativo na saúde mental dos jovens. Este é um problema sério e precisamos de tomar medidas urgentes”.
Segundo Royce Lee, psiquiatra e pesquisador da UChicago Medicine, nos Estados Unidos, além dos distúrbios sociais que desencadeiam o sofrimento mental, existem fatores biológicos que afetam o cérebro e o comportamento. O médico destaca que, embora o Sars-CoV-2 seja um vírus respiratório, ele ataca vários sistemas do corpo, podendo desencadear inflamações perigosas.
Mecanismos
“Existem caminhos causais em ambas as direções entre a ativação imunológica e a função cerebral, que afetam o comportamento e as emoções”, diz Lee, cuja pesquisa se concentra nesta área. “Em particular, existe uma ligação muito forte entre a ativação imunológica e a regulação da raiva”, acrescenta. A ativação imunológica pode vir diretamente do próprio vírus ou ser causada indiretamente pelo estresse e pelo medo.
Lee cita a gripe espanhola de 1918 como exemplo para compreender alguns dos efeitos de uma pandemia global na saúde mental. “Houve uma espécie de resposta tardia: nos dois ou três anos seguintes ao surto viral, a prevalência de distúrbios psiquiátricos aumentou e surgiram alguns novos, provavelmente como resultado da ativação imunitária”, explica. “Foi quase como uma segunda onda neuropsiquiátrica da pandemia. Mas então tudo ficou quieto novamente e mais ou menos voltou ao normal. Acho que é possível vermos tendências semelhantes com esta pandemia”, diz ele.
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