Com a queda do nível das águas em Porto Alegre e outras cidades afetadas pela inundações últimos tempos, a extensão da destruição causada pelas chuvas em todo o Rio Grande do Sul. Agora, o maior desafio das autoridades é iniciar o trabalho de reconstrução.
Priorizar múltiplas demandas urgentes, quantificar a enorme necessidade de dinheiro e utilizar recursos que chegam de diferentes fontes em diferentes prazos aumentam a probabilidade de cometer erros.
Um mês após o início das enchentes, os planos de recuperação do Estado prometem a maior operação do gênero na história brasileira: estimativas da Confederação Nacional dos Municípios (CNM) contabilizam mais de 581 mil desabrigados ou deslocados e prejuízos que já ultrapassam R$ 10,4 bilhões.
A BBC News Brasil consultou diversos especialistas em reconstrução de diversas formações, incluindo ecologistas, geógrafos, urbanistas e até guias da Organização das Nações Unidas (ONU) para saber quais tipos de erros devem ser evitados na reconstrução do Rio Grande do Sul.
Descubra 7 equívocos comuns que podem comprometer os esforços para reconstruir cidades destruídas pelas enchentes.
1. Reservar um tempo para resolver o que é urgente
Numa situação de calamidade, um dos maiores desafios é equilibrar a tensão entre a necessidade de tomar decisões rapidamente e, ao mesmo tempo, evitar erros. É o que explica o professor da Universidade de Illinois, Robert Olshansky, que pesquisa o processo de recuperação das cidades após desastres naturais.
“A velocidade de recuperação é importante para manter as empresas vivas, reconstruir infraestruturas e fornecer habitação temporária e permanente às vítimas de desastres. Se as autoridades públicas não agirem rapidamente, muitas vítimas começarão a reconstruir por si próprias, da forma e nos locais que determinarem”, alerta Olshansky, que ajudou a planear a reconstrução de Nova Orleães após a devastação do Katrina em 2005.
Ele acrescenta que apesar da urgência, é fundamental que a utilização dos recursos e as decisões sobre como será realizada cada obra e investimento sejam planejadas, para que a versão reconstruída seja o mais permanente possível.
“O planejamento pode maximizar oportunidades para coordenar o uso do solo e a infraestrutura, garantir a segurança, usar o design para melhorar a qualidade de vida dos moradores e reconstruir de uma forma que atenda às preocupações de todos os cidadãos”, afirma o professor e urbanista.
“Mas se o planejamento demorar muito, será ineficaz”, alerta.
2. Ser opaco quanto ao uso do dinheiro
Henrique Evers, gerente de desenvolvimento urbano do World Resources Institute Brasil (WRI Brasil), organização que pesquisa soluções sustentáveis para cidades e clima, diz que é fundamental que o poder público aja com muita transparência nas decisões sobre o uso e distribuição do dinheiro, com regras claras de acesso ao financiamento e comunicação eficiente.
“Estabelecer uma governança clara para decisões sobre esses recursos é fundamental, pois existe um grande risco de uso indevido, seja técnico ou ético”, afirma Evers.
O sociólogo Victor Marchezini, coordenador do Projeto Capacidades Organizacionais de Preparação para Eventos Extremos (COPE) do Cemaden, afirma que é fundamental que os governos federal, estaduais e municipais mantenham um portal de transparência atualizado para que a sociedade saiba o que está sendo feito com o dinheiro destinado para a reconstrução, incluindo montantes provenientes de doações.
Segundo especialistas, é importante garantir a credibilidade geral quanto ao uso adequado dos recursos para não prejudicar o fluxo de contribuições. O desafio também é não enrijecer o sistema de aplicação de recursos a ponto de dificultar e atrasar a sua utilização.
Olshansky, do pós-Katrina, diz que garantir o bom uso do dinheiro é um requisito para obter mais fundos de doadores internacionais que possam colaborar com a reconstrução, por exemplo. Mas é preciso ter cuidado para não burocratizar excessivamente a liberação de dinheiro.
“Acrescentar burocracia impede o processo de reconstrução. Uma recomendação seria acelerar a liberação de dinheiro para atender a população e, ao mesmo tempo, investir em um bom sistema de auditoria e contabilidade, para investigar e corrigir eventuais erros durante o processo. Solte primeiro e investigue depois”, afirma.
3. Reconstrua exatamente como era antes
Há consenso entre os especialistas de que não é possível reconstruir ou projetar a infraestrutura no Rio Grande do Sul da mesma forma que se fazia antes.
O Estado, que nos últimos anos sofreu uma sequência de eventos climáticos extremos, incluindo secas e inundações, precisa ser reconstruído para ser mais resistente ao clima do que antes.
Especialistas apontam que as novas construções devem necessariamente levar em conta a atual realidade climática mais instável para poder evitar a destruição.
Serão necessárias obras de contenção para proteger a população e as infra-estruturas contra ameaças de potenciais danos maiores.
“O clima continuará a mudar nos próximos anos, mesmo que deixemos de emitir gases com efeito de estufa hoje. É necessário planear estruturas adequadas a este novo cenário, que se aplica a casas, edifícios, espaços comunitários, estradas, infra-estruturas urbanas e rurais, sistemas de transporte, equipamentos de saúde e outros, que necessitam de estar preparados para choques e efeitos a longo prazo da o “novo normal”, além de ter capacidade de reconstrução rápida em caso de desastres”, recomenda o Observatório do Clima.
4. Não ouvir a ciência
O Rio Grande do Sul conta com uma vasta e qualificada comunidade acadêmica dedicada a pesquisar e sugerir caminhos para tornar o Estado mais preparado para enfrentar eventos climáticos extremos.
Walter Collischonn, hidrólogo e professor do Instituto de Pesquisas Hidráulicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), destaca que a reconstrução do Estado exigirá a mobilização de cientistas, com dados e estudos aprofundados.
Ele cita o exemplo dos dados obtidos na análise topográfica de Porto Alegre, que permitiram projetar quais áreas seriam afetadas em caso de falha do sistema de proteção hidráulica.
“Rapidamente fizemos mapas indicando quais seriam as profundidades da água e as decisões foram tomadas. Mas, para Canoas, não tínhamos disponíveis essas informações topográficas de alta resolução. A reconstrução vai exigir esta informação muito detalhada”, afirma, numa nota do Observatório do Clima.
No dia 17 de maio, a Rede Sul de Restauração Ecológica, formada por membros da Secretaria de Meio Ambiente e Infraestrutura (Sema), universidades, ONGs, entidades ambientais e setor empresarial, enviou ofício à Secretaria de Meio Ambiente do Rio Grande do Sul e ao Ministério do Meio Ambiente e Mudanças Climáticas propondo coordenar a criação de um grupo multiinstitucional de especialistas, composto por pesquisadores de Universidades, instituições de pesquisa, da secretaria e da Fundação Estadual de Proteção Ambiental para construir um plano estratégico de enfrentamento às emergências climáticas .
“Entendemos que o enfrentamento das emergências climáticas deve ocorrer numa perspectiva de curto, médio e longo prazo”, afirma o grupo.
5. Não ouvir os residentes afetados
O fortíssimo terramoto que atingiu a China e destruiu várias cidades em 2008 é apontado por Olshansky como um exemplo dos riscos de não envolver os residentes afectados nas decisões de reconstrução de casas e infra-estruturas planeadas.
O governo chinês reconstruiu tudo em tempo recorde, numa operação bem-sucedida e impressionante, mas o projeto foi criticado por se distanciar da população e não conseguir atender às necessidades reais.
“A reconstrução da China após o terramoto de 2008 enfatizou excessivamente a necessidade de uma reconstrução rápida, ignorando muitos problemas sociais e económicos”, afirma o planeador urbano.
“A rápida reconstrução de novas unidades habitacionais em terrenos facilmente disponíveis, como numa antiga siderúrgica, em vez de construir em locais com acesso às redes e serviços de transporte da população, inviabilizou o projecto”, acrescenta.
No condado de Beichuan, onde 80% dos edifícios desabaram, 6.000 pessoas morreram e deslizamentos de terra e inundações causaram grande devastação – o governo decidiu transferir os moradores para uma nova cidade: uma nova Beichuan, construída a 23 km da original. A cidade foi construída para acomodar 35 mil habitantes e, futuramente, chegar a 70 mil, mas, até 2015, permaneceu desocupada.
Para o Observatório do Clima é fundamental que a reconstrução do Rio Grande do Sul não reproduza as vulnerabilidades do solo e não mantenha a degradação ambiental que existia antes do evento extremo, e para isso é fundamental ouvir as demandas dos diferentes grupos sociais afetados pelas chuvas.
Os esforços de reconstrução podem ser desperdiçados se não atenderem às necessidades da população afectada.
Segundo o sociólogo Victor Marchezini, é importante incluir audiências públicas, bem como formar associações dos atingidos para que “se possa garantir maior peso político nas rodas de discussão pública sobre os rumos do processo de reconstrução e recuperação do desastre”. .
6. Construir apenas infraestruturas “cinzentas” e não “verdes”
A degradação ambiental do Rio Grande do Sul, com muitas margens de rios desprotegidas, sem vegetação nativa, e pouca capacidade de escoar e absorver águas pluviais, teve papel relevante no desastre ambiental que o Estado vive, segundo ambientalistas ouvidos pela reportagem.
Para criar resiliência a ondas de calor, tempestades, inundações, secas, frio intenso, subida do nível do mar, ventos fortes e outros extremos, as chamadas soluções baseadas na natureza são indispensáveis, como aponta o Programa das Nações Unidas para o Ambiente (Puma).
“É urgente iniciar ações de restauração ecológica nas áreas de risco e nas bacias hidrográficas afetadas. A reconstrução não pode fazer-se nos moldes do passado, acreditando que os fenómenos meteorológicos extremos serão raros e controláveis por obras de engenharia”, afirma o grupo Rede Sul de Restauração Ecológica.
“Os eventos são mais frequentes e a transformação de áreas de risco em áreas de restauração ecológica ajudará as populações humanas a serem menos afetadas no futuro.”
“Se tivéssemos mais água nesta época, para absorver e armazenar a água da chuva, o impacto [das chuvas e inundações] teria sido menor”, afirma o pesquisador Rualdo Menegat, doutor em ciências na área de ecologia da paisagem e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
“Como os pântanos foram drenados e estão todos ocupados por plantações, ou cidades, foi muito pior. Precisamos recuperá-los quando possível, plantar muito mato, muita mata nativa e limitar a devastação.”
7. Não repensar estratégias e decisões
Na nova realidade climática, as decisões que não previram eventos extremos devem ser reavaliadas pela sociedade.
As leis ambientais existentes, bem como as regras de ocupação do solo e estratégias de crescimento urbano, por exemplo, podem não funcionar para o cenário atual, na opinião da engenheira florestal Ana Rovedder, coordenadora do Centro de Estudos e Pesquisas em Recuperação de Áreas Degradadas (Neprade/UFSM), e um dos fundadores da Rede Sul de Restauração Ecológica.
“É dever do governo do Estado retomar o debate sobre uma série de medidas e possibilidades que foram aprovadas antes de toda essa catástrofe, e que já se mostraram ineficientes para a realidade atual de necessidade de conviver com os eventos climáticos”, disse. diz.
“Se realmente quisermos ser responsáveis com o futuro do Estado, com o futuro das novas gerações de gaúchos e gaúchas, precisamos parar e rever tudo o que sabíamos”, completa.
Nesse contexto, os municípios precisarão rever seus planejamentos regionais e planos diretores, alerta o Instituto dos Arquitetos do Brasil, escritório do Rio Grande do Sul.
Além disso, o órgão defende que é necessária a elaboração de planos sectoriais, como os de drenagem urbana e de acção climática, e que estes estejam em diálogo com os novos planos directores.
“Compreender a realidade urbana sob os efeitos da crise climática é imperativo. O planeamento e a legislação devem acompanhar a realidade que se apresenta, de forma a mitigá-la e transformá-la.”
Você gostou do artigo? Escolha como acompanhar as principais notícias do Correio:
Dê sua opinião! O Correio tem espaço na edição impressa para publicar a opinião dos leitores através do e-mail sredat.df@dabr.com.br
videos gratis
www globo
tv globo
resultado lbr
you video