Enquanto o universo volta sua atenção para o nascimento de Jesus Cristo, os brasileiros que, não poucos, embarcam em brincadeiras e são incentivados por “bilouras” (ou pilouras, ou, melhor ainda, astúcia e travessuras) podem correr para as filas do cinema para assista O Auto da Compadecida 2. Codirigida por Guel Arraes e Flávia Lacerda, a comédia aponta a ressurreição de João Grilo (Matheus Nachtergaele) presenciada por seu amigo Chicó (Selton Mello), sempre indiferente aos absurdos que relata e que narra com a incomparável afirmação final: “Só sei que foi assim”.
O milagre do retorno de João Grilo da morte alimentou, no set, o carinho entre dois capricornianos que “se complementam” — como destaca Selton ao falar de Nachtergaele no material promocional do filme. Para ele, o primeiro longa-metragem existirá e “será sempre um clássico”. Pela popularidade, ele vê a continuação, mais de 24 anos depois, como “uma gentileza que oferecemos ao público”. Quem define os rumos da nova adaptação é Matheus Nachtergaele: “o filme reúne tradições do arquétipo picaresco universal, adaptado à mentalidade e ao imaginário do Brasil”.
Mais de uma década após sua morte, brilha o nome do autor da peça (publicada em 1955) que sustenta o filme: Ariano Suassuna. A codiretora pernambucana do filme, Flávia Lacerda, contou com o mestre como “mentor” em algumas produções teatrais. Graças a ele, diz que bebeu da cultura medieval e ibérica e vê uma diferença na escrita de Suassuna: não há divisão entre obras eruditas e populares. Ainda comprometido com o roteiro, desenvolvido em conjunto com João Falcão, Adriana Falcão e Jorge Furtado, o codiretor Guel Arraes traça a modernização difundida na década de 1950 na trama que ainda toma emprestado o texto de Suassuna da década de 1960, Farsa da boa preguiça. Flávia e Guel apresentaram recentemente a reformulação da obra de Guimarães Rosa, com o longa Grande sertão.
Se, entre as histórias, João Grilo relata a existência de 9,873 milhões de estrelas no céu, O Auto traz outra história no peso dos milhões — com uma audiência superior a 2,2 milhões, há 20 anos, o filme original contribuiu para o crescimento número de um público brasileiro que estabeleceu reflexos de identidade com obras que mais tarde despontariam nos sucessos do Carandiru, e os milagres da multiplicação de públicos (e títulos) de Tropa de elite, Se eu fosse você e Minha Mãe é uma pedaço. “Voltar a (visão brasileira) ter orgulho de si mesmo” é um dos objetivos da produção, como destaca Flávia Lacerda, atenta à dimensão espiritual e à dimensão pop do novo trabalho.
Novo sertão
Quem pode esquecer a saga do gato que “come” (defeca) dinheiro e outros desastres no sertão de Taperoá, com enviados do céu e do inferno, encenações de morte e pilhas de mentiras hilariantes sobrepostas com um timing admirável? Agora, o espectador terá contato com a cabra Joaninha, ensinada por Chicó, “para desaprender a comer”; com o papagaio educado que memorizou o código civil e também com a certeza de que “a fé traz esperança”, como intercede a nova Nossa Senhora (vivida por Taís Araujo). As aventuras do promotor demo e do juiz Cristo são lembradas.
Com o que é segmentado, como uma trama de cordel, O Auto da Compadecida 2 traz o frescor de incorporar novos tipos, como Coronel Ernani (Humberto Martins), pai da quase pretendente de Chicó, Clarabela (Fabíula Nascimento), que se viu abandonado por Rosinha (Virgínia Cavendish). Nisso emerge a sensibilidade de Chicó, que admite: “Quando você foi embora, até deixei de gostar de mim”.
Num contexto de “casamento” entre o fanatismo e a ignorância, e a ameaça da seca, o filme engloba a administração de lixeiras e “pisas” ordenadas pelos chamados poderosos. “Toda aparelhada, cheia de vocabulário”, Clarabela se envolve em uma aventura colorida (fotografada por Gustavo Hadba) que leva até a disputas eleitorais. Exercendo monopólio, com controle dos meios de comunicação e sistema de vendas (a crédito) em uma pequena cidade, o comerciante Arlindo (Eduardo Sterbitch) é outro novato na trama, assim como seu amigo (“de lei”) e ex- parceiro de João Grilo, o “tabacudo (ignorante) e todo proeminente”, Antônio do Amor (papel interpretado pela malandragem de Luis Miranda). Junto à graça da retórica demagógica, repleta de conteúdo, estão vozes de talentos como Fatel, Ana Barroso, Maria Bethânia e Chico César, numa trilha marcante.
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