Uma Proposta de Emenda Constitucional (PEC) que tramita no Senado pode permitir a transferência da propriedade da terra do Costahoje sob domínio da União, para Estados, municípios e proprietários privados.
O assunto voltou à tona após audiência pública realizada na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, nesta segunda-feira (27/5).
Durante o encontro, que contou com a participação de membros do governo federal, representantes de alguns municípios e da sociedade civil, os senadores ficaram divididos sobre o tema.
Aprovada em fevereiro de 2022 na Câmara dos Deputados, a PEC 3/2022 estava parada na CCJ do Senado desde agosto de 2023.
Ambientalistas alertam que a proposta traz o risco de privatização das praias pelas empresas e pode comprometer a biodiversidade do litoral brasileiro.
Os defensores da proposta argumentam que não se trata de privatização nem que o texto tenha qualquer motivação ligada ao mercado imobiliário.
O que mudaria?
A proposta é de autoria do ex-deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA) e conta com parecer favorável do relator, senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), filho do ex-presidente Jair Bolsonaro.
Se aprovada e sancionada com o texto atualmente em tramitação no Senado, a PEC revogaria um trecho da Constituição e autorizaria a transferência de territórios de marinha para ocupantes privados, Estados e municípios.
As terras marinhas são áreas localizadas na costa marítima num raio de 33 metros de uma linha média traçada em 1831.
Atualmente, as praias pertencem à União e são administradas pela Secretaria do Patrimônio da União (SPU), do Ministério da Gestão e Inovação nos Serviços Públicos.
A PEC prevê que estados e municípios receberão gratuitamente a titularidade dos terrenos que já possuam prédios públicos construídos.
Os ocupantes privados poderiam receber o título da terra mediante pagamento. E a União ficaria com áreas utilizadas pelo serviço público federal, áreas não ocupadas e aquelas cobertas por unidades ambientais federais.
Além disso, a PEC proíbe a cobrança da sentença pela União quando há transferência de domínio.
No caso dos proprietários privados, o texto prevê a transferência mediante pagamento aos regularmente inscritos “no órgão gestor do patrimônio da União até a data da publicação” da Emenda à Constituição.
Além disso, autoriza a transferência de imóveis a ocupantes “não cadastrados”, “desde que a ocupação tenha ocorrido pelo menos cinco anos antes da data de publicação” da PEC.
Acesso às praias
A Lei Federal nº 7.661/1988, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, determina que “as praias são bens públicos de uso comum da população, com acesso livre e aberto a elas e ao mar, em qualquer direção e sentido”.
Abre-se uma exceção para trechos da costa considerados de interesse para a segurança nacional.
Esse é um dos pontos que provocou desaprovação da PEC. Os críticos temem que a construção de empreendimentos próximos à faixa arenosa do litoral brasileiro possa levar ao bloqueio do acesso da população à praia.
A PEC não prevê alterações na Lei Federal nº 7.661/1988, mas Ana Paula Prates, diretora do Departamento de Gestão Oceânica e Costeira do Ministério do Meio Ambiente (MMA), acredita que a aprovação do texto pode levar ao fechamento de acesso a áreas de areia.
“Quando todas essas terras que ficam depois das praias são privatizadas, você começa a ter uma privatização do acesso a elas, que são bens comuns da sociedade brasileira”, disse em entrevista à Rádio Nacional.
Os defensores argumentam que “não há uma linha no texto” que possa permitir a privatização das praias.
Para o senador Flávio Bolsonaro, a PEC pode facilitar o cadastramento fundiário e também gerar empregos. O relator destacou que a motivação da PEC é um “sentimento municipalista”.
“Os prefeitos sabem mais da situação dos municípios do que nós aqui no Senado. É fato: a PEC não privatiza praias”, disse o relator na audiência.
Regularização ou “caos administrativo”?
Os defensores da proposta argumentam que a mudança é necessária para regularizar propriedades em terrenos marinhos.
Segundo Flávio Bolsonaro, existem “inúmeras construções construídas sem o conhecimento de que estão localizadas em terrenos de propriedade da União”.
Segundo o relator da proposta, os terrenos marinhos causam danos aos cidadãos e aos municípios.
“O cidadão tem que pagar impostos exagerados sobre os imóveis em que mora: paga foro, taxa de ocupação e IPTU. Os municípios, por outro lado, sofrem restrições no desenvolvimento de políticas públicas relativas ao planejamento territorial urbano devido às restrições ao uso de ativos sob o controle da Unity”.
O prefeito de Florianópolis (SC), Topázio Neto (PSD), também defendeu essa posição, dizendo que são os municípios que têm investido na gestão dessas terras ao longo dos anos, mas sem ter o controle total.
Neto, porém, disse acreditar que é necessária mais discussão.
“Uma fórmula única para todo o Brasil não vai funcionar. Cada município tem uma realidade diferente”, considerou.
Por sua vez, a secretária adjunta da Secretaria de Gestão do Patrimônio da União do Ministério de Gestão e Inovação dos Serviços Públicos, Carolina Gabas Stuchi, argumentou que se a PEC fosse aprovada hoje haveria “caos administrativo”, porque se estima que que existem cerca de 3 milhões de propriedades não registradas ocupando essa faixa.
Segundo ela, outros países estão recomprando áreas de praia privatizadas há algum tempo e existem leis mais simples que poderiam ajudar a resolver problemas relacionados aos terrenos marinhos sem causar tantos danos.
A gerente técnica da Associação dos Terminais Portuários Privados (ATP), Ana Paula Franco, disse que a entidade é desfavorável à proposta porque traz insegurança jurídica.
Todo terminal utiliza parte do terreno marítimo, com a devida autorização do poder público. E segundo Ana Paula, construir um porto leva muito tempo e seu funcionamento exige muito investimento. Para ela, mudanças legais poderiam judicializar a questão.
Os críticos da medida apontam ainda que ela incentivará a especulação imobiliária, afastando os mais pobres de áreas consideradas “nobres” e agravando o desequilíbrio ambiental.
Conservação ambiental
Na audiência pública desta segunda-feira (27), Carolina Gabas Stuchi, do Ministério de Gestão e Inovação dos Serviços Públicos, também destacou a importância do domínio da União sobre a faixa marítima para a soberania nacional e o equilíbrio ambiental.
“A PEC favorece a ocupação desordenada, ameaçando os ecossistemas, tornando essas terras mais vulneráveis a eventos climáticos extremos”, alertou.
Ambientalistas apontam ainda que o nível do mar tem aumentado nos últimos anos e essas terras, que normalmente possuem manguezais, restingas e falésias, são consideradas áreas de preservação permanente.
A presidente da Comissão de Meio Ambiente (CMA), senadora Leila Barros (PDT-DF), reconheceu que há problemas na gestão dos terrenos marinhos, mas disse que, na prática, a proposta flexibiliza a legislação ambiental.
“A extinção de terras marinhas e a transferência de propriedade podem afectar o papel destas áreas na mitigação das alterações climáticas”, afirmou durante a sessão.
Uma nota técnica do Grupo de Trabalho de Uso e Conservação do Mar (GT-Mar), que atua na Frente Parlamentar Ambientalista do Congresso Nacional, apontou que a fiscalização também poderia ser fragilizada com a PEC, o que ameaçaria ainda mais a biodiversidade costeira.
“Sem a prerrogativa de gerir esse patrimônio, o governo federal terá muito mais dificuldade em implementar políticas socioambientais de combate às mudanças climáticas”, diz a nota.
Na visão de Ana Ilda Pavão, representante do Movimento dos Pescadores e Pescadoras Artesanais, a PEC também prejudicará as comunidades tradicionais, que habitam essas áreas há décadas, e os pescadores, que já sofrem com o assoreamento e o desmatamento.
“O conteúdo dessa PEC, basicamente, é a urbanização das orlas, são os grandes projetos. Quem vai lucrar? Não somos nós. Só vamos perder. Essa PEC precisa ser revista”, disse Pavão.
Defesa
Outro ponto em jogo é a defesa e segurança do país. Os críticos afirmam que a ideia do controle dessas terras pela União está intimamente relacionada à segurança nacional e à proteção contra ataques estrangeiros.
O conceito foi estabelecido durante o Império, com a chegada de Dom João VI e da família real. O terreno foi destinado à instalação de fortificações contra invasões marítimas.
Mas para o senador Flávio Bolsonaro, a necessidade de defender o território contra invasões estrangeiras mudou.
“Atualmente, estas razões já não estão presentes, nomeadamente tendo em conta os avanços tecnológicos no armamento que alteraram os conceitos de defesa territorial”, afirmou no seu parecer.
O que acontece depois?
Para ser aprovada, essa PEC deverá ser votada em plenário no Senado e receber o apoio de pelo menos três quintos dos senadores (49). Mas, até o momento, não há previsão de quando será votado.
Segundo informações divulgadas pela GloboNews, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, decidiu frear o projeto por enquanto.
Caso haja mudança substancial no Senado, o texto precisa retornar à Câmara.
A PEC enfrenta grande resistência dentro do governo, com o Ministério de Gestão e Inovação em Serviços Públicos (MGI) se posicionando contra a sua aprovação.
Nas redes sociais, a discussão sobre o tema também mobilizou muitos internautas.
Influenciadores e ativistas gravaram vídeos para se opor à proposta e pedir que a população se manifestasse contra ela.
Até o fechamento desta matéria, a PEC contava com mais de 74 mil votos contrários à sua aprovação no portal e-Cidadania, que coleta opinião e incentiva a participação dos cidadãos nas atividades legislativas. Os votos a favor totalizam pouco mais de 1.100.
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