Todos Municípios brasileiros devem, de acordo com a Constituição Federal, investir uma parcela mínima de seus recursos em serviços básicos de saúde e educação.
Existe, no entanto, uma enorme desigualdade quanto é gasto e como.
A Frente Nacional de Prefeitos e Prefeitos (FNP) realizou um levantamento com dados oficiais de diversas fontes, a pedido da BBC News Brasil, que mostra os gastos de cada município brasileiro por habitante nas áreas de saúde e educação.
Na saúde foram consideradas despesas com Ações e Serviços de Saúde Pública, ou ASPS, que incluem, por exemplo, pagamento de salários, desenvolvimento científico e tecnológico, produção, aquisição e distribuição de insumos para serviços de saúde.
Na educação foram consideradas despesas com Manutenção e Desenvolvimento da Educação (MDE), que incluem pagamento de professores, capacitação, construção e reforma de prédios escolares, entre outros.
A pesquisa mostra ainda quanto os gastos nessas áreas representam a receita total de cada município e se atendem ao mínimo constitucional de 15% na educação e 25% na saúde.
No topo deste “ranking” estão cidades menores, com até 50 mil habitantes.
Um exemplo é Borá, no interior de São Paulo, a segunda cidade menos populosa do paíscom apenas 907 habitantes (mais que apenas a Serra da Saudade, em Minas Gerais, com 833), que gasta R$ 4,9 mil por pessoa com saúde. Na cidade de São Paulo, em comparação, o valor é de R$ 1.400.
“É comum que cidades pequenas gastem mais por habitante, justamente porque essas cidades têm um orçamento relativamente maior (por habitante), afirma Kleber Castro, assessor econômico da FNP, que organizou os dados.
Castro diz que esse orçamento maior é consequência de falhas no sistema de distribuição de receitas públicas entre os entes federados.
Enquanto o arrecadação de impostos se concentra nas cidades com maior atividade econômica, as transferências de recursos acabam favorecendo as cidades menores, afirma o economista.
Mas o que são essas transferências?
Muitos municípios brasileiros, principalmente os menores, não conseguem se sustentar apenas com a arrecadação própria de impostos e dependem de transferências dos Estados e da União.
Estudo realizado pela Federação das Indústrias do Estado do Rio de Janeiro (Firjan), com dados de 2022, mostrou que mais da metade dos municípios estão em situação crítica na capacidade de sustentar sua estrutura básica com atividade econômica própria , conforme mostrou reportagem da BBC News Brasil.
O Fundo de Participação Municipal (FPM), por exemplo, é repassado da União às prefeituras e representa quase metade da arrecadação das cidades com menos de 10 mil habitantes, segundo outro estudo realizado pela FNP.
Para a organização, o atual arranjo dessa transferência favorece as cidades menores, já que o modelo de distribuição foi criado em outro contexto, na década de 1960, com o objetivo de proteger as cidades menores com uma fonte de financiamento permanente e estável.
“Acontece que, desde então, a economia se descentralizou e a dinâmica demográfica do país mudou, caracterizada pela redução da participação da população rural e maior concentração urbana, especialmente nas grandes e médias cidades”, afirma a organização .
Royalties do petróleo
O economista Vladimir Fernandes Maciel, coordenador do Centro Mackenzie de Liberdade Econômica, destaca que alguns dos municípios que lideram o ranking com maiores gastos têm fontes extras de receitas, como royalties do petróleo ou compensação financeira pela exploração mineral.
Um exemplo é Maricá (RJ), com gasto por habitante de R$ 23,3 mil em 2023.
Segundo reportagem do jornal O Globo, a cidade que mais recebeu royalties da indústria de extração de petróleo e gás do país em 2023, seguida por Saquarema (R$ 1,7 bilhão) e Macaé (R$ 1,3 bilhão), ambas no Rio de Janeiro .
“Nestas localidades, essas receitas adicionais permitem cobrir investimentos em diversas áreas, liberando recursos para aumentar os gastos com saúde e educação”, afirma Maciel.
Ele destaca que as análises do tema não podem se limitar ao valor dos gastos por habitante, mas devem buscar também indicadores que indiquem os resultados obtidos com os valores investidos.
“Avalie o eficiência dos gastos públicos é essencial para uma análise completa e precisa”, afirma o economista.
Maior gasto público = melhores serviços?
Diversos estudos já compararam a relação entre o aumento dos gastos públicos, a eficiência dos serviços oferecidos à população e qualidade de vida.
Um deles, Um elevador social quebrado? Como promover a mobilidade social (A Broken Social Elevator? How to Promote Social Mobility), da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE), publicado em 2018, identificou que os países que gastaram mais no passado em educação e saúde pública tinham maior mobilidade social — isto é, melhoria da situação socioeconómica das famílias.
Neste estudo, o Brasil foi o segundo pior em mobilidade social entre 30 países.
A pesquisa buscou identificar quais elementos fazem com que as famílias tenham melhores condições de vida e como as políticas públicas podem promover isso.
As condições de saúde têm impactos significativos no rendimento familiar e nos resultados futuros das crianças, quer porque podem tirar alguém do mercado de trabalho, quer porque implicam maiores despesas para as famílias, diz o relatório.
Na educação, o relatório analisa uma série de estudos que mostraram que os gastos públicos na área ajudaram a reduzir a desigualdade entre crianças ricas e pobres.
“Pelo menos parte da razão pela qual As crianças mais pobres ficam atrás dos seus pares mais ricos em termos de resultados educacionais é porque frequentam escolas diferentes”, diz o relatório, que aponta que as escolas que atendem alunos mais pobres tendem a ter menos recursos.
Mas a própria OCDE admite que esta relação entre despesa e qualidade não é direta, porque depende da forma como os recursos foram utilizados e se há foco nos grupos mais desfavorecidos socialmente.
“A resposta política não se limita, portanto, a gastar mais em geral, mas sim a orientar os gastos para programas eficazes”, afirma a OCDE.
Castro, da FNP, acrescenta que “há locais que gastam menos e têm mais qualidade, e há o contrário também”.
“O certo é que os municípios que recebem mais recursos do que necessitam, em geral, tendem a gastar pior e a desperdiçar mais recursos”, afirma Castro.
A economista Carla Beni, professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV), destaca que os gastos nos municípios devem ser acompanhados de políticas públicas adaptadas à realidade local.
“Quanto mais as decisões e as ferramentas são generalizadas, mais erros são cometidos. Cada município tem suas particularidades. Um é industrial, o outro é mais voltado para o comércio ou a agricultura”, diz Beni.
Ela também critica o que chama de demonização do setor público no Brasil, em que pede menos Estado e mais privatizações.
“Um dos alicerces da política fiscal é promover a qualidade dos serviços públicos para reduzir a desigualdade de oportunidades”, afirma Beni.
O presidente do Sindicato Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), Alessio Costa Lima, lembra que o principal gasto na área de educação está relacionado aos gastos com pessoal, que representam quase 90% do total.
“O que varia de um município para outro é a forma como a rede de ensino está organizada”, diz Lima, que cita como exemplo o número de escolas e de professores por escola.
Ele destaca ainda que o nível de formação dos profissionais da rede pode aumentar os custos.
“Existem municípios onde todos os profissionais da rede possuem ensino superior e até pós-graduação”, aponta Lima.
“Quanto mais qualificados, maior será o investimento na folha de pagamento desses profissionais.”
Lima, que também é secretário de educação de Ibaretama, no Ceará, diz que é preciso ter cuidado ao relacionar diretamente mais gastos com qualidade educacional.
“Não podemos negar que a qualidade do ensino pressupõe mais investimento, porque não depende apenas do esforço e da boa vontade de professores, alunos e famílias. Mas a questão não é tão linear”, diz Lima.
“Muitos fatores afetam o desempenho dos alunos. A mesma política, com a mesma quantidade de recursos e aplicada a cidades do mesmo tamanho, pode produzir resultados completamente diferentes, para pior ou para melhor.”
As alterações parlamentares reforçam a desigualdade?
O presidente do Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), Hisham Hamida, afirma que os recursos que hoje financiam a saúde não são suficientes para os gastos dos municípios nesta área.
“Há subfinanciamento, onde tenho cada vez mais um aumento [de despesas] seja pela incorporação de novas tecnologias, pelo aumento da expectativa de vida, tudo isso impacta a saúde”, afirma Hamida.
Ele também lembra que alterações parlamentarespretendida por deputados federais e senadores, também criou disparidades.
Só em 2024, os parlamentares comprometeram mais de R$ 13 bilhões em emendas sanitárias, segundo painel do InvestSUS.
Nessa modalidade, são os próprios deputados que escolhem para onde vai o recurso.
“Não existe critério técnico per capita ou para necessidades de saúde naquela região. Na maioria das vezes essa alteração é indicada por afinidade político-partidária, local que é a base daquele parlamentar”, destaca Hamida.
“Como resultado, há uma tendência de aumento desta desigualdade. Aqueles que têm maior influência política tenderão a obter mais emendas do que aqueles que não o têm”.
Um artigo publicado na revista Cadernos de Saúde Pública (CSP) de 2024, analisou dados de 2015 a 2020 e identificou que havia “grande discrepância nos valores per capita entre municípios de diferentes portes populacionais” e que cidades menores eram mais favorecidas. O trabalho foi produzido por pesquisadores da Universidade Estadual de Londrina, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e da Fundação Oswaldo Cruz.
O estudo diz que, em vez de corrigir as desigualdades, as alterações podem aumentá-las ainda mais.
“Foram identificadas diferenças de até 16 vezes no valor per capita em emendas parlamentares para Atenção Primária à Saúde (APS) entre municípios com até 5 mil habitantes e aqueles com mais de 500 mil, evidenciando as distorções causadas por essa forma de transferência de recursos durante o período avaliado”, afirma o estudo.
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