O governo decidiu lavar as mãos de qualquer esforço para bloquear o avanço do PL 1.904/24. Ontem, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva deixou claro o quanto o Palácio do Planalto teme outra derrota humilhante no Congresso, caso pretenda interferir no assunto. Ao sair da cerimónia de encerramento da 112.ª Conferência Anual da Organização Internacional do Trabalho (OIT), em Genebra, na Suíça, foi questionado sobre o tema por um jornalista — e ele evitou.
“Você acha que não é justo – acabei de sair de uma palestra – vir falar sobre algo que está sendo discutido na Câmara? Deixa eu voltar ao Brasil e fazer um balanço da situação. falar com você”, ele respondeu, depois se afastando.
Na sessão de quarta-feira, os responsáveis governamentais pouco fizeram para impedir que o projecto avançasse com urgência. O líder na Câmara, José Guimarães (PT-CE), disse que o tema “não é assunto de interesse” do governo. Mas, desde o dia anterior, estava decidido que os dirigentes dos partidos de base iriam libertar as bancadas para que cada deputado votasse como quisesse. Demorou apenas 24 segundos para aprovação.
Desacelerar
Dos partidos que apoiam Lula, apenas PSol e PCdoB deixaram claro que seriam contra a tática de aprovação precipitada do PL —e que também se oporão, caso o texto seja votado no plenário. O PT negocia uma redação mais “suave” para o projeto. O líder do partido na Câmara, Odair Cunha (MG), proporia a proibição apenas dos casos de assistolia —procedimento que interrompe os batimentos cardíacos fetais em gestações avançadas. A técnica, aliás, é recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS).
Mas isso não significa que, no governo, não houvesse posições contrárias – e duras – ao projeto. A Ministra da Mulher, Cida Gonçalves, publicou nota oficial no Instagram. “Seja pela desinformação sobre direitos e como acessá-los, exigências desnecessárias, como boletins de ocorrência ou autorização judicial; ou pela falta de serviços de referência e de profissionais capacitados, o Brasil delega a maternidade forçada a essas meninas vítimas de estupro, prejudicando não só o seu futuro social e econômico, como também a sua saúde física e psicológica (…) Esse cenário vai piorar ainda mais se o PL 1.904/2024 avançar na Câmara dos Deputados, já que o país vive uma epidemia de sexualidade infantil. abuso (…). Não podemos mais uma vez revitimizar meninas e mulheres vítimas de um dos mais cruéis crimes contra as mulheres”, diz a nota.
O ministro dos Direitos Humanos e Cidadania, Silvio Almeida, também utilizou as redes sociais para criticar o PL. “Esse projeto empurra a sociedade brasileira para um abismo de violência, de indiferença, de violação institucional dos direitos humanos de meninas e mulheres. (…). Qual mulher vítima de violência sexual buscará apoio do Estado sabendo que ela pode ser mais penalizada do que quem a estuprou (…) Esse PL acelera a falência moral e jurídica do Estado”, lamentou.
Mulheres vulneráveis
Como é a lei
» O Código Penal Brasileiro impõe de um a três anos de detenção para mulheres que interrompem a gravidez. Para quem realiza o procedimento, a pena aumenta para quatro anos —se a gestante consentir— e para 10 anos quando não houver consentimento.
» O aborto só é permitido em três situações no Brasil: 1) quando a mulher corre risco de morte e não há outra forma de salvá-la; 2) nos casos de fetos com anencefalia (ausência de cérebro ou parte dele); e 3) e em casos de estupro.
» A pena para estupro é de seis a 10 anos de prisão, aumentada para até 12 anos se o crime envolver violência grave. Se a vítima tiver menos de 14 anos ou for considerada vulnerável por algum outro motivo (como deficiência mental), a lei prevê pena de reclusão de oito a 15 anos, prorrogável até ao máximo de 20 anos se houver lesão corporal grave. A pena só é maior nos casos em que o crime sexual resulta na morte da vítima —o limite é de 30 anos.
Como a lei pode permanecer
» O PL 1.904/24 pretende alterar o Código Penal para aumentar a pena imposta a quem aborta quando há viabilidade fetal, presumida após 22 semanas de gestação. Propõe equiparar o aborto ao homicídio simples, que pode durar até 20 anos. Valeria a pena para as mulheres grávidas e para quem ajuda a interromper a gravidez.
» Se o projeto for adiante, a mulher que fizer um aborto estará sujeita a punições mais severas do que as previstas para os estupradores.
» Segundo o texto do PL, o fato de o Código Penal não prever “limites gestacionais ao aborto” não significa que os legisladores que o promulgaram em 1940 pretendessem “estender a prática até o nono mês de gravidez”.
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