Envolvida em diversas questões contundentes e de grande repercussão, a Associação Nacional dos Defensores Públicos (Anadep) tem trabalhado fora dos tribunais e tribunais para encontrar soluções para os problemas. Para tanto, a entidade ajuizou Ação Direta de Inconstitucionalidade no Supremo Tribunal Federal (STF) para anular os efeitos da Lei 14.843/24, que trata da soltura temporária de presos.
É um embate contra o Congresso e parte da opinião pública que acredita que a chamada saída é uma forma de libertar criminosos perigosos. Rivana Ricarte, presidente da Anadep, justifica a atuação da associação: “A libertação temporária é um mecanismo ressocializador na execução penal. A convivência familiar, dentro dos prazos já estabelecidos em lei, minimiza os efeitos da prisão e favorece o retorno gradual ao convívio social”. , ele afirma.
Sobre o projeto que equipara o aborto de bebês após 22 semanas a homicídios, Rivana Ricarde afirma que, muitas vezes, o próprio Estado cria dificuldades para as vítimas de violência sexual. “A busca pelo aborto com o avanço da idade gestacional é resultado da ausência das mais diversas políticas públicas, entre elas, o desconhecimento sobre a previsão legal do aborto e, até mesmo, de casos de dificuldade em reconhecer os sinais de gravidez entre crianças “.
Qual o principal argumento da Anadep na ação que questiona a constitucionalidade da Lei 14.843/24, que trata da soltura temporária de presos?
Ressaltamos que, quando a lei restringe a saída temporária, pondo fim às visitas familiares e tornando obrigatório o exame criminológico, a lei viola os princípios da proporcionalidade, da legalidade e da humanidade e vai contra o que já foi decidido no STF, na ADPF 347 , que trata da situação inconstitucional do sistema prisional brasileiro. É importante destacar que a saída temporária é um mecanismo ressocializador na execução penal. A convivência familiar, dentro dos prazos já estabelecidos em lei, minimiza os efeitos da prisão e favorece o retorno gradual ao convívio social. Assim, quando a nova lei restringe as possibilidades de saída para estudo e trabalho, acaba por culminar numa evidente proibição de saída temporária e transforma o regime de semi-liberdade de cumprimento de pena num regime fechado “qualificado”. A realidade do sistema prisional brasileiro e a escassa oferta de trabalho extramuros para os presidiários demonstram que é improvável que o emprego esperado se concretize para a maioria dos presidiários. Quem trabalha com o sistema penitenciário sabe do caos que essa lei vai causar.
Qual o impacto da suspensão do benefício no dia a dia nas prisões?
Os impactos são sociais e também económicos. A liberdade provisória é instituto fundamental do sistema progressivo de cumprimento de pena, pois auxilia na autodisciplina do preso. É de conhecimento geral que não existem programas de ressocialização no sistema prisional, havendo escassez de equipes de estudo, trabalho, assistência psicossocial e religiosa, o que faz do contato e da assistência familiar o único instrumento eficaz e permanente na preservação das expectativas, no fortalecimento de vínculos sociais saudáveis e reintegração com o mundo exterior. Nesta etapa, as saídas temporárias configuram-se também como aspecto complementar às visitas sociais, caracterizando-se não apenas como direito à individualização da pena, mas sobretudo como mecanismo ressocializador na execução penal. Na medida em que a lei aprovada proíbe a saída para visitar familiares e restringe esse benefício, de modo que as saídas temporárias só ocorram em casos de estudo ou trabalho, onde as oportunidades são absolutamente escassas, a finalidade ressocializadora da pena acaba sendo violada.
Como podemos evitar que criminosos perigosos voltem às ruas e cometam crimes?
Esta é uma questão que envolve soluções bastante complexas e que dizem respeito às políticas públicas dirigidas a quem sai do sistema. Existe uma falsa ideia de que todos os presos que gozam do benefício da liberdade provisória não retornam à unidade prisional e cometem novos crimes. Mas esta é uma exceção. As discussões legislativas em torno desta questão ocorreram com base em exemplos individuais. Dados do sistema prisional indicam que mais de 95% das pessoas que utilizam o benefício retornam regularmente à unidade prisional para continuar cumprindo pena. Ou seja, o descumprimento da pena é uma exceção que atinge menos de 5% dos casos. Na maioria dos casos, esse “incumprimento” está relacionado com atrasos, sendo muito mais rara a possibilidade de abandono da pena. Não é a proibição de saída que impede que as pessoas que cumprem pena voltem às ruas e cometam crimes, a resposta tem que ser dada a partir de um aspecto social, ou seja, proporcionando uma reintegração gradual, garantindo que o tempo dentro da unidade prisional promova a capacidade de trabalhar e atuar em políticas públicas para que aqueles que saem do sistema tenham acesso ao trabalho e aos meios de sobrevivência que os afastem do contato com a criminalidade.
Você acha que prevalecerá no STF o entendimento de que a suspensão dos passeios não pode afetar quem já cumpre pena?
Entendemos que não há outra saída. O artigo 5º, VL, da Constituição Federal estabelece que “a lei penal não retroage, salvo em benefício do réu”. Portanto, o entendimento de que as alterações da nova lei só serão aplicáveis às infrações penais ocorridas após a publicação, ou seja, após 11 de abril de 2024, é o que deve prevalecer.
Congresso discute equiparar aborto de gestações de 22 semanas a homicídio. Qual a sua avaliação sobre este tema?
A questão em torno do debate que equipara o aborto de gestações após 22 semanas aos homicídios tem sido conduzida com base em premissas que me parecem erradas. A discussão deve ser analisada sob a perspectiva da ausência de políticas públicas, nunca do aspecto religioso, nem da criminalização. Na verdade, a prática do aborto em idade gestacional avançada, especialmente nos casos que envolvem o contexto de violência sexual, só existe devido à falta de proteção do Estado e à absoluta incapacidade do Estado em acolher meninas e mulheres vítimas de violação de forma eficiente, eficaz e rápido. Isto é absolutamente agravado quando se alinha com desigualdades relacionadas com rendimento, educação, informação, raça ou etnia e territorialidade.
Este é um direito garantido?
Para esclarecer ainda mais, a verdade é que o aborto nos casos de gravidez de risco para a gestante, gravidez resultante de violência sexual e no caso de fetos anencéfalos é um direito garantido no Brasil, mas sua implementação é extremamente burocrática, desgastante e violenta . Embora exista uma padronização da oferta pelo Sistema Único de Saúde para o aborto em gestações decorrentes de estupro, existem apenas 55 municípios (de um total de 5.570 existentes) com Serviços de Referência para Interrupção da Gravidez e quase sempre localizados em centros urbanos. Portanto, a busca pelo aborto com o avanço da idade gestacional é resultado da ausência das mais diversas políticas públicas, incluindo o desconhecimento sobre as disposições legais do aborto e, até mesmo, de casos de dificuldade em reconhecer os sinais de gravidez entre as crianças. . A discussão sobre a possibilidade de equipará-lo ao homicídio, resultando na punição de mulheres e meninas vítimas de estupro com penas superiores à punição dos seus autores, é absolutamente desproporcional, desumana e violadora da dignidade da pessoa humana.
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