Laura Scardua*
Samah Jabr é uma psiquiatra e psicoterapeuta palestina que trabalha nos setores de saúde pública e privada em Jerusalém Oriental, na Cisjordânia, e trabalhou anteriormente em Gaza. Chefe da Unidade de Saúde Mental do Ministério da Saúde palestino, ela escreve sobre as consequências da ocupação israelense na saúde mental do povo palestino. Além disso, ela é cofundadora da Rede Global de Saúde Mental da Palestina e consultora do Protocolo de Istambul – um manual para investigar e documentar tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes e desumanos. Jabr também lecionou em sala de aula e em ambientes clínicos em diversas universidades palestinas, além de ser afiliado à Universidade George Washington.
Samah esteve em Belo Horizonte para o 1º Congresso Brasileiro de Psicologia e Migrações, entre os dias 19 e 21 de junho. No evento, além de ministrar uma palestra, a psiquiatra lançou seu livro “Sumud em tempos de genocídio” – uma coletânea de textos produzidos ao longo de duas décadas que tratam das consequências traumáticas da ocupação israelense na saúde mental dos palestinos – que, no Brasil, foi organizado e traduzido por Rima Awada Zahra.
Em entrevista ao Estado de Minas, a médica palestina falou sobre sua profissão, a definição de Sumud —fio que liga os textos de seu livro— e as consequências da ocupação histórica do território e dos acontecimentos após o 7 de outubro, dia marcado pelo ataque do Hamas a Israel.
LIVRO
“Eu precisaria de outro livro para traduzir a palavra ‘sumud’. No entanto, basicamente, é a perseverança e a resistência do povo palestiniano face à opressão que visa arrancar-nos da nossa terra. A imagem que um palestino tem da palavra sumud é a de uma oliveira com raízes profundas que não é arrancada apesar das tempestades e das condições difíceis. ‘Sumud’ também ocorre através da ação, não apenas de um estado mental. Qualquer ação que mantenha a ligação de um palestino com a sua terra é uma ação de sumud. Quando as nossas casas são demolidas, nós as reconstruímos, quando as nossas oliveiras são quebradas, nós as replantamos. ‘Sumud’ é superar as dificuldades e continuar a viver apesar de todos os esforços para nos deixar impotentes, é encontrar a nossa maneira de agir contra a opressão.”
OCUPAÇÃO
“Existem diferentes tipos de colonização no mundo. A ocupação israelita é colonialista e está interessada em eliminar os palestinianos ou retirá-los do seu lugar para se apropriar das suas terras. Assim, a necropolítica [uso do poder político e social de forma a determinar, por meio de ações ou omissões, quem pode permanecer vivo ou deve morrer] Faz parte da ocupação israelense. E a necropolítica não é implementada apenas através de bombardeamentos, mas também através de ataques ao sistema de saúde, para que os palestinianos continuem a morrer, mesmo que, por exemplo, haja um cessar-fogo amanhã de manhã.”
“E há também a estratégia de fazê-los passar fome. Pessoas famintas tornam-se más umas com as outras. Estas são respostas estatais à sumud palestina. Agora, vemos matança. E eles não matarão todo mundo, mas matarão gente suficiente para assustar o resto e expulsá-los. Acredito que Israel se encontra numa situação frustrante porque as matanças excessivas que perpetraram não resultaram no que queriam: a expulsão completa dos palestinos.”
ESCRITA
“Escrever é minha prática de autodefesa intelectual. Se eu não vivesse na Palestina ocupada, teria adorado escrever poesia e adorar canções, mas dada a minha experiência de vida, estou empenhado nesta autodefesa intelectual, que me obriga a escrever para poder partilhar uma narrativa diferente do que aqueles que descreveram os palestinos durante anos. muito tempo. O mundo fala em nome dos palestinos. É muito importante para mim contar minha própria história. E, como médica que trabalha muito próxima das pessoas, ouvindo relatos das dores mais profundas e histórias íntimas, sinto a responsabilidade de compartilhar não apenas a minha história.”
“Eu escrevo esses tipos de artigos e livros [como ‘Sumud em tempos de genocídio’] para educar o mundo sobre a Palestina. Porém, na Palestina, todas as manhãs dou entrevistas na rádio ou na televisão, escrevo artigos em jornais, tudo para educar e simplificar os conceitos de psicologia e psiquiatria para os palestinos. Faço isto porque acredito que a sensibilização para a saúde mental não deve ser monopólio de pessoas “altamente sofisticadas”.
SAÚDE MENTAL
“Acredito que o projecto de libertação dos palestinianos não é apenas a libertação da terra, mas também a libertação das mentes que estão expostas a todos os tipos de políticas malignas. No caso palestiniano, não se trata de stress pós-traumático porque a experiência traumática já dura há mais de um século, desde o mandato britânico. E não há fim para isso. É deliberado, colonial e repercute na população palestina. E muitas vezes as pessoas nem sabem de onde vêm os sintomas. É do seu confronto direto com os soldados? Ou está relacionado com a morte de seu colega de classe? Ou com a demolição da sua casa? Ou seu pai, que passou anos intermináveis na prisão? Ou ao avô que foi expulso de casa em 1948? É um ambiente traumático que inspiramos e expiramos todos os dias, e não há depois. O trauma é colonial, cumulativo, crônico e geracional. E o que é pior, é deliberativo, faz parte da estratégia política para impor a impotência.”
PSIQUIATRA E PSICOTERAPEUTA
“Meu trabalho é muito variado. Reúno pessoas interessadas em saúde e saúde mental para planejar estratégias para os palestinos, como prevenção do suicídio e cuidados de saúde mental para crianças e adolescentes. Também dou aulas na faculdade e supervisiono vários colegas de profissão. Porém, também sou clínico e psicoterapeuta e por isso vejo reflexos do que vem acontecendo na esfera política em meus pacientes. Em termos de trabalho clínico, quero dizer algo contra-intuitivo. Com os últimos acontecimentos em Gaza, notei que os meus pacientes desapareceram subitamente. Por que? Porque começam a considerar as suas histórias pessoais como triviais face ao intenso sofrimento que outros palestinos atravessam. Então, por um tempo, eles relutaram em vir.”
“Então, alguns meses depois, houve um enorme aumento no número de pacientes. Muitas pessoas que estavam estáveis há vários anos começaram subitamente a ter recaídas. Vi pessoas incapazes de comer em resposta à fome em Gaza, porque viram que o nosso povo precisa de arriscar as suas vidas para encontrar comida. Muitas pessoas têm dificuldade para dormir. Além disso, um grande número de palestinianos que trabalhavam para israelitas e, porque ficaram subitamente desempregados e incapazes de sustentar as suas famílias, começaram a sentir dores inexplicáveis do ponto de vista médico.”
MEIOS DE COMUNICAÇÃO
“A grande mídia é complacente com o genocídio dos palestinos. Os meios de comunicação social e a desinformação foram usados para preparar o caminho para actos de genocídio. Espero que um dia os jornalistas e proprietários de meios de comunicação que espalham mentiras sobre a Palestina sejam julgados no Tribunal Internacional de Justiça.”
BRASIL
“O Brasil tem um histórico de atuação ativa na questão palestina. Atualmente, acho que o governo está tentando ser ativo e falar sobre, e é óbvio para mim que existe uma solidariedade significativa no país, mas há condições para o Brasil ser ainda mais ativo e falar mais sobre a Palestina. O Brasil é estimado na América Latina e pode perpetuar e promover mais solidariedade com a causa palestina. Temos agora um grande exemplo disto na África do Sul, que transformou a sua retórica numa reacção à apresentação de Israel ao Tribunal Internacional de Justiça. Se algum país deste continente pode fazer isso, é o Brasil. Espero que o país pense em formas de transformar a sua solidariedade emocional em ações políticas que contribuam para o fim, não só do genocídio, mas da ocupação.”
*Em colaboração com Fernanda Tubamoto
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