Se ainda estivesse vivo, o cantor e compositor pernambucano José Bezerra da Silva (1938-2005) estaria cantando um de seus sambas que falam sobre maconha, talvez até tivesse escrito uma nova música, para comemorar o resultado final do Supremo Federal Julgamento no Tribunal (STF), que decidiu descriminalizar o porte de até 40 gramas de maconha para uso pessoal, termina nesta quarta-feira, após nove anos de discussão na Corte.
Para fugir da fome, Bezerra saiu do Recife aos 15 anos, apenas com a roupa do corpo, embarcando em um navio que transportava açúcar para o Rio de Janeiro. Assim como outros sambistas, foi trabalhar na construção civil, como pintor de paredes. Excelente ritmista (tamborum, surdo e outros instrumentos), iniciou sua carreira como músico na Rádio Clube, com Jackson do Pandeiro, para quem compôs suas primeiras músicas: O Preguiçoso e Meu Venom. Em 1969, pela gravadora Copacabana, lançou seu primeiro single. Depois de estudar violão e harmonia por oito anos, passou a integrar a Orquestra Globo. Mas ficou famoso e ganhou dinheiro como o inventor do chamado sambando, assim chamado porque seus sambas faziam muito sucesso nas prisões.
“Não fumo maconha, não sinto cheiro de cocaína, não bebo cachaça, não vou ao pagode nem ao futebol e sou alérgico a cigarro. Sou mangueirense, mas não Vou para a Mangueira quando a maré está baixa o máximo que faço é passear com o patrão”, disse Bezerra. Sua “transgressão” consistiu em narrar a realidade social dos morros, dos subúrbios e das prisões. “Dizem que sou malandro, cantor bandido e até bravo/ Porque canto a realidade de um povo faminto e marginalizado”, cantou, em Partideiro Sem Nó na Garganta, do álbum Presidente Caô Caô.
No mesmo LP, no samba Vítima da Sociedade, cantou: “Se quiser prender o ladrão/ Pode voltar pelo mesmo caminho/ O ladrão está escondido lá embaixo/ Atrás da gravata e do colarinho”. Seus sócios são desconhecidos do grande público: Barbeirinho do Jacaré, Baianinho, Em Cima da Hora, Embratel do Pandeiro, Trambique, Zé Dedão, Popular P., Pedro Butina, Simão PQD, Wilsinho Saravá, Rubens da Mangueira, Pinga, Dunga da Coroa, Jorge Laureano, Adelzo Nilto, Edson Show, entre outros.
Nas letras desses compositores, os conflitos sociais emergem como quem ri da própria desgraça, de forma irônica ou áspera. Bezerra não gostou de ser chamado de pagodeiro. “Quando a música é feita por gente pobre, analfabeta ou crioula, dizem que é pagode. Eu não aceito isso!”, afirmou. Filho de Ogum, frequentador assíduo do terreiro Pai Nilo, em Belfort Roxo, Bezerra da Silva começou a ser cantado por compositores de rock e MPB, quando queriam defender a legalização da maconha. Marcelo D2 gravou um álbum só para ele.
Discriminação e hipocrisia
São cerca de 10 sambas conhecidos de Bezerra, um dos quais inspira a coluna: “Vou apertar/Mas não vou acender agora (s’eimbora gente)/Vou apertar / Mas não vou acender agora/ E se você aguenta, malandro/ Pra mexer na cabeça Tem tempo”, diz a letra de Malandragem dá um tempo. A rigor, a letra dessa música continua atual, pois o STF estabeleceu regras para separar traficantes de usuários de drogas, mas o consumo de maconha continua ilícito e proibido em locais públicos. A diferença é que o usuário flagrado pela polícia será autuado, terá a maconha apreendida e sofrerá sanções administrativas, mas não poderá ser preso e processado criminalmente.
Ao limitar a posse para uso pessoal a 40 gramas, o Tribunal estabeleceu um critério objetivo, que beneficiará os jovens negros, pardos e pobres, que são tratados como criminosos, enquanto os jovens brancos de classe média ou alta, portando igual ou mais quantidade de maconha, vão para casa e nem são acusados. Há muito preconceito, discriminação e hipocrisia.
O Brasil gasta R$ 591,6 milhões por ano para manter presos condenados por porte de até 100 gramas de maconha, segundo estimativa do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Existem 19.348 presos nesta condição. A pesquisa também constatou que 8.591 presos portavam menos de 25 gramas de maconha; Custa R$ 262,7 milhões para mantê-los presos, R$ 30.580 para cada preso. O Brasil tem 852 mil presos, dos quais 650 mil estão em prisões fechadas.
O cânhamo chegou ao Brasil nas velas e no cordame das caravelas. A diamba (maconha) começou a ser cultivada no Brasil a partir de 1549, trazida pelos escravos, como “tabaco de Angola”. A Coroa portuguesa incentivou a sua exportação para a metrópole e a Rainha Carlota Joaquina, esposa do Rei D. João VI, adquiriu aqui o hábito de beber chá de marijuana. Somente em 1889, com a República e a proibição da prática da capoeira, o governo começou a combater os cultos de origem africana e o uso da cannabis. Desde então, a maconha foi intensamente reprimida, principalmente durante o regime militar.
Em 1976, quando Bezerra lançou seu segundo disco, Rita Lee e Gilberto Gil foram presos em Florianópolis, na turnê dos Doces Bárbaros, flagrados com alguns baseados em um quarto de hotel. Foi nesse contexto que Bezerra começou a cantar sobre a maconha. Seu nome foi associado à defesa da legalização desta erva: “Não há nenhuma ação flagrante porque a fumaça já subiu até o topo, assim o diz”. O samba A fumaça já subiu até a cuca foi premonitório: “Se você quiser me levar eu vou, nesse fingimento eu vou / Mas na frente do homem que bate o martelo, / a gente vai sei quem cometeu o erro”.
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