Como todo jornalista, Chico Felitti se pauta por boas histórias. Foi por curiosidade que ele decidiu pesquisar a vida de uma mulher misteriosa, moradora de uma mansão mal cuidada em um dos bairros mais valorizados de São Paulo – o resultado foi o podcast A Mulher na Casa Abandonadalançado em 2022. Apesar da gravidade do tema, que envolvia denúncias de escravidão, o podcast viralizou e resultou até em danças TikTok, um exemplo da complexidade destes tempos.
Agora Chico Felitti volta-se para a primeira história que publicou em livro, Ricardo e Vânia (2019), também digno de folhetim: o do personagem conhecido pejorativamente como “Fofão da Augusta”, que reside no imaginário de Pauliceia.
Ricardo Corrêa da Silva era um renomado artista de rua, cabeleireiro e maquiador, integrante da comunidade LGBTQIA+ de São Paulo, falava francês e italiano, mas era por seu apelido que era lembrado – devido aos procedimentos estéticos que o deixavam com o inchaço rosto, comparado ao personagem infantil, e ao batom vermelho que ela usava.
Esclarecer essa experiência é a premissa do podcast Desconhecido, em parceria com Isabel Dias, escritora e mãe de Chico Felitti, que estreou nos streaming players nesta quarta-feira, 3.
O mistério da Rua Augusta
Foi em 2017 que a vida de Chico se cruzou definitivamente com a de Ricardo, como conta o jornalista ao Estadão. O homem de rosto peculiar, que usava pulôver mesmo no calor, era quase uma lenda urbana em São Paulo.
Ninguém sabia seu nome e parecia se importar. O trabalho, desconhecido. Podia ser um cabeleireiro famoso ou um cara perigoso e agressivo – Chico ouvia as mais diferentes versões sobre aquela figura. Mas ele decidiu investigar por conta própria.
O resultado virou uma grande matéria no site Buzzfeed – “20 páginas impressas em sulfite”, lembra ele – e, como é comum nas histórias que Chico Felitti conta, repercutiu. A tal ponto que Ricardo – cujo nome ninguém sabia – finalmente passou a ser chamado pelo primeiro nome.
Mudei para São Paulo para fazer faculdade, e nos primeiros dias passei na rua pelo Ricardo, que tinha aquele rosto peculiar. Perguntei para muita gente quem ele era e só me disseram que ele era ‘Fofão’, aquele apelido super malvado. Eu mantive essa pergunta na minha cabeça. Afinal, essa pessoa tem uma história. Foram mais de 10 anos entre eu conhecê-lo pela primeira vez e poder entrevistá-lo no Hospital das Clínicas.
Foi num domingo de Páscoa, na casa da mãe, perto da mesma Augusta por onde Ricardo passava todos os dias, que Chico resolveu procurar a história daquele personagem. Ele recebeu uma mensagem dizendo que “Fofão” estava no hospital para cuidar de um dedo com miíase – infecção causada por ovos de mosca que penetram na pele.
A mãe de Chico, Isabel, se ofereceu para ir com o filho visitar aquele ilustre estranho – literalmente, pois Ricardo estava internado sem que seu nome fosse conhecido. Ela vai e decide levar biscoitos.
Disseram que o paciente estava irritado e brigava com todo mundo. Ele tinha problemas psicológicos que precisavam de tratamento. Foi só lá que Chico descobriu que seu protagonista tinha nome, sobrenome e história. E era mais complexo do que cabia na superficialidade e no preconceito de quem apenas via aquela figura andando pelas ruas.
Ricardo morreu poucos meses depois, em 2017, aos 60 anos. Na época, distribuía panfletos de peças de teatro para sobreviver.
‘Há muitos Ricardos no Brasil’
“O podcast é uma tentativa de dar um final feliz a esse caso”, afirma Chico Felitti. Ricardo, que não tinha identidade, hoje é nome de uma casa que acolhe pessoas LGBTQIA+ em Araraquara, cidade natal do personagem.
Os recursos provenientes do projeto serão integralmente doados à instituição. “Existem muitos Ricardos no Brasil”, reflete o jornalista.
Por ter participação direta na história, Isabel também narra o podcast com Chico e participa do roteiro. O objetivo é mostrar os bastidores da busca por Ricardo e apresentar ao ouvinte sua vida.
O trabalho conjunto fortaleceu os laços entre mãe, filho e o próprio Ricardo. Os três acabaram se aproximando. “Foi ela quem descobriu muitas coisas”, diz o jornalista. Ricardo a chamou carinhosamente de “Janie Fonda”, em referência à atriz de Hollywood.
Unknown está disponível em todos os players de streaming, com seis novos episódios às quartas-feiras. Ouça o primeiro aqui.
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