Promessa de campanha de Luiz Inácio Lula da Silva, só agora o presidente reinstalou a Comissão de Mortos e Desaparecidos Políticos, órgão responsável por buscar informações sobre as circunstâncias da eliminação dos opositores à ditadura, localizar seus restos mortais e também emitir certidões atestando que estes militantes morreram sob a responsabilidade do Estado.
O presidente retoma o trabalho da comissão quando se completa o 50º aniversário dos desaparecimentos e perseguições de militantes que morreram no poder do Estado e em confrontos com os militares.
Extinta quando as luzes se apagaram no governo de Jair Bolsonaro, que não reconhecia as atrocidades do regime militar e venerava o torturador Capitão Carlos Alberto Brilhante Ustra, a comissão deixou de existir nesse período e o governo petista ainda enfrentou resistência de longa data por parte de setores militares quanto ao seu retorno, ainda que a atual geração das Forças Armadas não tenha envolvimento no ocorrido naquele período.
Para fazer a volta desse colegiado decolar, Lula precisou ser pressionado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), cujos membros estiveram no Brasil no mês passado e se reuniram com o chefe do Executivo no Palácio do Planalto. E enviaram ao petista uma dura mensagem sobre a necessidade do retorno da Comissão de Mortos e Desaparecidos, sob o risco de o país ser denunciado internacionalmente.
Para compor a comissão, Lula substituiu ex-indicados de Bolsonaro, como o deputado Filipe de Barros (PL-PR), na linha de frente da defesa do conservadorismo e da direita, e indicou nomes comprometidos com a busca pela justiça de transição, pela memória e pela verdade. Para substituir o parlamentar Bolsonaro, na vaga da Câmara na comissão, o presidente nomeou a deputada Natália Bonavides (PT-RN), de perfil diferente. Ela é autora de um projeto de lei que proíbe nomes de militares e torturadores que trabalharam na ditadura de nomear ruas, praças, viadutos e avenidas, locais públicos.
A promotora Eugênia Gonzaga volta a presidir a comissão, que anteriormente a chefiou e cujo trabalho é reconhecido pelas famílias dos atingidos por violações do regime de exceção estabelecido no país há 21 anos. O escolhido diz que a comissão foi encerrada prematuramente em dezembro de 2022, e que esta decisão “gerou grande preocupação e angústia, principalmente por parte dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, pois permaneciam inviabilizados trabalhos relevantes, como a retificação de certidões de óbito e busca e identificação de corpos de desaparecidos políticos”.
A comissão retorna num momento de relações ainda delicadas com os militares. Lula atrasou a reinstalação deste colegiado por medo de desagradar o quartel, com quem vem, desde sua posse, construindo pontes com as três forças (Marinha, Exército e Aeronáutica), espaços conhecidos por acolher o bolsonarismo.
Primeira tarefa
Para a deputada Natália Bonavides, não deve importar o que as Forças Armadas pensam de qualquer tema que não seja a soberania nacional, e defendeu o regresso da comissão, da qual fará parte.
“Além disso, é dever do Estado brasileiro atuar para que as famílias que foram atingidas pelas ações dolosas por ele praticadas tenham o direito ao luto. As forças podem ficar incomodadas se o Estado cumprir essa obrigação”, disse Bonavides ao Correio.
Para o parlamentar, a primeira tarefa da comissão será analisar um relatório que aponte o que ainda precisa ser feito pela comissão, o que não funcionou no governo Bolsonaro. “Certamente precisaremos retomar os processos de exumação e coordenar a adequação do mapeamento de alguns cemitérios, como os de Perus e Vila Formosa. Também deverá ser missão da comissão auxiliar o governo brasileiro na criação de espaços de preservação da memória” , disse o deputado.
Perus e Vila Formosa são locais onde existiam cemitérios clandestinos e para onde eram levados os corpos dos que enfrentaram o regime. Ossos encontrados nessas sepulturas aguardam testes de identificação.
Familiares comemoram retorno da comissão
Feroz em suas ações em busca de explicações dos militares sobre o destino de seus familiares que trabalharam no combate à ditadura, a ativista de direitos humanos Diva Santana comemora o retorno da Comissão de Mortos e Desaparecidos, da qual fez parte como representante de essas famílias. Na Guerrilha do Araguaia, movimento de resistência à luta armada exterminado pelos militares, ela perdeu a irmã, Dinaelza Santana, e o cunhado, Wandick Coqueiro. Desde a década de 1980, Diva participa da busca por ossos naquela região do norte do país e viu equipes cavarem covas onde poderiam estar não só seus familiares, mas também familiares de seus companheiros naquela luta.
“Conseguimos, com muita luta e mobilização, desde o início do governo, que Lula cumprisse essa promessa de campanha. Houve muitas mobilizações, inclusive em tribunais internacionais. foi preciso que o presidente anulasse um ato do anterior, tornasse-o nulo e sem efeito, para que a comissão fosse reinstalada. A volta da comissão faz parte da luta pela democracia, que está ameaçada”, disse Diva. .
Líder do Grupo Torturna Nunca Mais, no Rio, Victoria Grabois atuou contra a ditadura, viveu na clandestinidade e ainda busca notícias sobre três familiares eliminados pelos militares no Araguaia. O pai dela (Mauricio Grabois), o irmão (André Grabois) e o marido (Gilberto Olímpio) estão desaparecidos. Ela também é autora de uma ação de duas décadas que ordenou ao Estado que tomasse medidas para localizar as vítimas dos militares. Grabois reforçou que foi necessária pressão para que Lula tomasse a decisão de recriar a comissão. “Essa reintegração só aconteceu porque houve pressão. Foi o que fez a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), depois que solicitamos ações para cumprimento da sentença nesse sentido. Lula teve que mostrar trabalho para a Corte”, disse Grabois .
Outros tópicos
O grupo Coalizão Brasil Memória, Verdade e Justiça, que reúne dezenas de entidades ligadas aos direitos humanos, também falou positivamente sobre a comissão. A entidade fez parte da pressão sobre o governo.
“Desde o início do mandato de Lula, estamos dialogando e pressionando o governo para que o órgão seja recriado, ao lado de outras organizações da sociedade civil e sob liderança e liderança de familiares, que lideram essa luta há décadas. Por fim, concretizou-se o compromisso público assumido pelo governo desde antes da inauguração”, informou, em nota.
Uma das exigências da Coalizão é que a nova comissão se concentre no reconhecimento da perseguição aos povos indígenas e aos camponeses, que também são alvos das ações dos militares. E isso também inclui os desaparecimentos atuais, que afetam os mais vulneráveis.
“Continuaremos lutando para que a comissão tenha seu escopo de atuação ampliado. Entendemos que é fundamental que ela se abra ao reconhecimento de sujeitos e grupos historicamente excluídos da justiça transicional brasileira, notadamente os povos indígenas, os camponeses, a população negra e moradores de favelas e periferias”, entende o grupo.
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