Madalena Carmem Frida Kahlo Calderón, conhecida mundialmente como Frida, seguida do sobrenome alemão herdado de seu pai, Kahlo, morreu aos 47 anos em 1954.
A sua curta vida, no entanto, foi seguida por décadas em que ela se transformou numa das figuras femininas mais conhecidas do mundo, de mito a mercadoria.
Em adição a pinturas e esculturas, fotografias, vídeos, documentos, desenhos, cartas e até o diário particular do artista tornaram-se alvo de interesse público.
“A ideia de usar a si mesma como tema de sua obra elevou Frida a um lugar excepcional”, aponta a escritora mexicano Francisco Haghenbeck, autor do livro O segredo de Frida Kahlo.
As principais obras da pintora são seus autorretratos — especialmente uma série de pinturas em que ela aparece de corpo inteiro, muitas vezes sangrando, sofrendo e em hospitais.
Na última década, os objetos artísticos e pessoais da mulher mexicana têm circulado pelo mundo em diversas exposições.
E a imagem de Frida também se tornou um ícone pop: seu rosto aparece em camisetas, canecas, ímãs de geladeira, bolsas e produtos diversos.
“Kahlo reúne numa única pessoa e obra vários elementos que contribuíram para que a sua imagem se tornasse um mito: o exótico, o mundo subdesenvolvido como pano de fundo e o ser mulher, além de um inegável e original talento plástico”, disse à BBC. Brasil, professor da Universidade Autônoma Metropolitana de Xochimilco, Eli Bartra, autor de Frida Kahlo. Mulher, ideologia, arte.
Mito
Segundo Bartra, o mito em torno dela começou a ser construído pela própria artista durante sua vida.
“Nos lugares que visitou, na Europa e nos Estados Unidos, a vida e a obra de Frida despertaram muito interesse. Com sua morte, esses lugares deram continuidade à construção do mito”, afirma a pesquisadora.
“Logo surgiu o interesse das feministas alemãs, pela sua origem alemã e pelo nome ‘Frida’. O movimento dos ‘Chicanos’ (mexicanos que vivem nos EUA) também se interessou pela figura da artista porque acreditavam que ela representava a mexicanidade por excelência.”
Para Haghenbeck, o “mito de Frida” também foi reforçado pelos romances que a pintora teve com personagens famosos de sua época.
“O amor e a atração de personagens como André Breton, Trotsky, Picasso e Rockefeller, além de Diego Rivera, ajudaram a tornar conhecida e venerada a vida de Frida, de personalidade forte e dócil, alegre e sofrida”, afirma o escritor.
Frida Kahlo foi casada duas vezes, em 1929 e 1940, ambas com o muralista mexicano Diego Rivera.
Devido aos relacionamentos extraconjugais – Rivera chegou a ter um caso com a irmã de Frida, que pôs fim ao seu primeiro casamento – o casal teve um relacionamento longo, mas conturbado.
Entre idas e vindas, o pintor teve romances com artistas e intelectuais, como Leon Trotsky, a quem Frida ofereceu abrigo político em sua própria casa em 1937.
O acidente de ônibus, ocorrido em 1925, e as mais de 30 operações a que foi submetida — uma barra de ferro passou por sua barriga e virilha no momento do acidente — também contribuíram para a imagem da mulher que transformou seu próprio sofrimento. em arte.
Ela também tinha um defeito no pé como resultado de uma contração poliomielite na infância.
Para Edla Eggert, pesquisadora de pós-doutorado em Estudos da Mulher pela Universidade Autônoma Metropolitana de Xochimilco e professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS), foi essa apresentação do sofrimento humano em diferentes dimensões que fez de Frida uma das os artistas mais famosos do mundo.
“Existe esse ponto de contato enigmático que ela produz com todos que já vivenciaram uma tragédia com seu corpo”, explica Eggert.
Na principal biografia de Kahlo, escrita por Hayden Herrera, a aparência exótica da pintora, com seus adornos e roupas típicas das comunidades mexicanas, foi descrita como uma estratégia para tirar o foco de suas cicatrizes e deformidades físicas nas pernas e pés.
“Assim como os autorretratos confirmaram a sua existência, as roupas fizeram com que a mulher frágil, muitas vezes acamada, se sentisse mais magnética, mais visível e mais enfaticamente presente como um objeto físico no espaço”, escreveu Herrera em Frida – a biografia.
“Paradoxalmente, elas eram uma máscara e uma moldura. Como definiam a identidade do usuário em termos de aparência, as roupas distraíam Frida – e o espectador – da dor interior.”
Quando precisou usar aparelho ortopédico para corrigir desvios na coluna, por exemplo, Frida deixou a peça à mostra e a decorou com acessórios, como se fizesse parte de seu traje.
Segundo Herrera, à medida que a saúde de Frida piorou, seus enfeites e joias ficaram mais elaborados e coloridos.
A pintora se vestia assim mesmo nos dias em que não podia sair do quarto.
ícone pop
Eli Bartra diz que muito deste “mito de Frida”, no entanto, ajudou a criar uma “Frida pop” – uma reprodução em massa da imagem do pintor que muitas vezes é esvaziada de significado.
“O que funciona agora é a mercadoria da Frida. Ela se transformou em arte popular justamente porque vende.”
A pesquisadora explica que, no México, Frida tem atualmente uma dimensão mais normal e menos mítica.
“Ela é conhecida, reconhecida e apreciada, mas de uma forma mais humana. O mito, aliás, contribuiu para que muitos se cansassem de Kahlo”, diz Bartra.
“Frida, hoje, talvez não seja mais querida do que outros pintores nacionais, como Remedios Varo e María Izquierdo”.
Para a antropóloga e professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) Sônia Maluf, o sucesso contemporâneo de Frida está ligado à relevância de sua obra, mas também a uma reinterpretação superficial de sua vida.
“Algumas leituras acabam ‘higienizando’ Frida em dimensões que não valeriam a pena destacar, como seu ativismo de esquerda, sua bissexualidade e até mesmo a forma como ela transformou o que seria a tragédia da mutilação física em uma obra de arte, em algo belo e sublime”, diz.
“O acidente e suas operações foram quase sempre cobertos de forma sensacionalista”, acrescenta Bartra.
Feminista?
Na década de 1950, Diego Rivera descreveu Frida como “a primeira mulher na história da arte a lidar, com absoluta e intransigente honestidade, poderíamos até dizer com uma crueldade indiferente, aqueles temas gerais e específicos que só dizem respeito às mulheres”.
“Ela nunca disse feminista, pelo menos ele nunca se apresentou assim. Mas podemos perceber como seu trabalho retrata um universo feminino e uma rebelião contra a condição social da mulher da época”, explica Bartra.
Segundo Haghenbeck, Frida estava longe de ser a figura que hoje se apresenta como exemplo de feminismo.
“Mesmo assim, ela era uma rebelde, uma mulher firme em suas convicções e comprometida com seus ideais”.
A forma como Frida expôs a sua bissexualidade e o seu casamento e a forma como retratou de forma crua uma maternidade frustrada — a pintora sofreu três abortos devido às consequências do acidente — antecipou as atuais questões de género em todo o mundo.
No quadro O Hospital Henry Fordpor exemplo, a pintora retratou o momento de sua segunda aborto espontâneosofreu no hospital de mesmo nome.
“As feministas ainda se interessam pela obra de Frida porque ela conseguiu expressar, plasticamente, uma rebelião contra uma feminilidade imposta às mulheres. Às vezes ela se apresentava como andrógina, às vezes pintava cenas de partos, abortos, assassinatos de mulheres, algo que não era expostos até então”, aponta Bartra.
Uma das fases em que Frida mais pintou autorretratos foi durante seu divórcio, em 1935, quando a artista saiu de casa e foi morar em um apartamento pobre no centro da Cidade do México.
Mesmo se recuperando de uma cirurgia que amputou os dedos do pé direito, ela lutou para conquistar a independência econômica do ex-marido e começou a vender seus quadros.
Em Autorretrato com cabelo cortadopintada durante a separação, a pintora aparece com cabelos curtos — uma das longas tranças que ela usava, e que Rivera tanto gostava, está em sua mão — e vestindo terno masculino.
No topo do quadro, Frida escreveu um trecho de uma canção mexicana: “Olha, se eu te amei foi pelo seu cabelo; agora que você está careca, não te amo mais”.
Outra obra conhecida da época foi Uns Cuantos Piquetitos (1935), que retrata uma mulher nua e ensanguentada sobre uma cama, com um homem parado ao lado dela, segurando uma faca.
O trabalho foi feito depois que Frida leu uma reportagem de que um homem havia matado a esposa a facadas por causa de ciúmes e, ao se defender na Justiça, disse ao juiz: “foram só alguns pequenos cortes”.
“Uns Cuantos Piquetitos é uma denúncia da violência contra a mulher e da condescendência da cultura machista para com o agressor”, observa Eggert.
O maior legado do trabalho de Frida, porém, foi a ideia de que questões consideradas privadas na vida das mulheres deveriam ser tratadas como políticas.
“A vida e a obra de Frida são elementos que colocam em tensão a condição tradicional da mulher”, afirma Sônia Maluf, da UFSC.
“Alguns autores consideram que o feminismo está presente em suas obras não de forma referencial, mas pela antecipação do que se tornou um lema feminista a partir da década de 1960: ‘o pessoal é político’.”
Filha da Revolução
Frida Kahlo declarou-se “filha de revolução Mexicana“, que ocorreu em 1910, três anos após seu nascimento, e durou até 1920.
Até os treze anos, ela cresceu em meio a tiroteios, conflitos populares e camponeses armados e viu sua mãe oferecer comida e ajuda aos zapatistas quando eles passavam pelo bairro de Coyoacán, então periferia da Cidade do México onde morava a família Kahlo.
A adolescência do artista foi marcada pelo México pós-revolução, um momento histórico de efervescência cultural.
“Frida adorava a cultura popular mexicana, desde a comida até os trajes típicos. Ela era uma mulher que gostava de tacos e mariachis, não era elitista”, ressalta Haghenbeck.
“Ela morou alguns anos nos Estados Unidos, mas mesmo estando lá, dava festas com pedaços de papel, tequila e usava vestidos típicos. Tanta cor e alegria, para os americanos, era algo exótico. Frida no exterior plantou uma semente que, a partir de 1960, levou estrangeiros ao México porque se lembravam dela”.
“Frida foi uma metáfora para o México: colorida, dinâmica, mas sofrendo de grandes feridas”, acrescenta o escritor.
Relatório publicado originalmente em julho de 2017
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