Entidade central na literatura e no sertão evocada pelo escritor João Guimarães Rosa (27/06/1908-19/11/1967), presente na obra-prima do autor desde as primeiras menções, o ecossistema da vereda vem sendo dizimado desde o Noroeste e Norte de Minas Gerais, também na chamada trijunção de Minas Gerais com Goiás e Bahia. Imortalizado na literatura nacional sob o título Grande deserto: caminhosa paisagem está murchando na vida real no mesmo ritmo do bioma que a abriga, o Cerrado, o segundo mais devastado do Brasil, atrás apenas da Amazônia, segundo o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais.
Nesse ritmo de destruição, dizem os especialistas, não haverá espaço para a sobrevivência do Cerrado natural e das trilhas, o que aproxima essa paisagem do primeiro título pensado por Guimarães Rosa para aquela que seria sua maior obra, citada há 70 anos. atrás na revista O Cruzeiro: em 17 de abril de 1954, a publicação revelou que o autor daria ao seu livro o nome de Veredas mortas. O nome consagrado foi outro. Hoje, o título abandonado soa como uma premonição.
Os impactos, as condições ambientais e climáticas em 55 municípios de Minas Gerais, Bahia e Goiás que possuem registros literários e históricos deixados por Guimarães Rosa naquela época mostram uma degradação brutal, através da série de reportagens especiais Caminhos mortosproduzido pelo Estado de Minas, que toma emprestado o título original da obra-prima — mais atual do que nunca.
A destruição
Visite os lugares que inspiraram Grande deserto: caminhos é olhar para uma paisagem cada vez mais devastada. É o que também se verifica nos caminhos por onde o autor percorreu ao lado de gente do campo, numa travessia de gado que o inspirou para o livro — descrito no diário A manada. Situação ainda mais preocupante quando se considera que existe a “caixa d’água” que irriga afluentes do rio São Francisco — e também as memórias de Rosa —, como o Urucuia, o Paracatu e o Rio das Velhas.
Irreconhecíveis para muitos destes registos literários, económicos ou geográficos, as extensas florestas com vegetação tortuosa e os imponentes buritis característicos dos caminhos vão sucumbindo, caindo para dar lugar aos eucaliptos, às plantações, às pastagens e à erosão na desertificação. O Cerrado queima com carvão; os rios secam; os caminhos estão enterrados; as molas retraem-se no solo. O calor, marca registrada do sertão, torna-se cada vez mais abrasador, agravando todo o processo. E se alimentando disso.
Dados compilados pela equipa EM do Painel Intergovernamental sobre Alterações Climáticas (IPCC) — um órgão das Nações Unidas (ONU) — indicam que a temperatura máxima média no interior já muito degradado de Rosia poderá aumentar 1,4°C entre 2021 e 2040, e até 2,52°C, entre 2041 e 2060, simplesmente se não houver redução dos impactos ambientais, das emissões de carbono ou do calor. Ou seja, nada precisaria piorar para que a situação já crítica continuasse a deteriorar-se, uma vez que na última década a temperatura global aumentou 1,1°C, segundo as mesmas fontes.
A mesma pesquisa prevê para áreas com nível mais avançado de desertificação no Brasil — Cabrobó (PE), Gilbués (PI), Inhamus (CE), Irauçuba (CE), Jaguaribe (CE) e Seridó (PB) — aumentos médios menos dramáticos , 1,1°C e 2,05°C, respectivamente, nas mesmas condições.
Menos chuva
As chuvas nos 55 municípios do sertão eternizados por Rosa apresentariam, no mesmo cenário de curto prazo (2021 a 2040), uma seca maior, com redução da precipitação anual de 1,81%. Por outro lado, as chuvas destrutivas com máximas de um dia — tempestades concentradas em um curto período de tempo, gerando grandes danos, erosão e pouca absorção de água pelo solo para recarregar as nascentes — aumentariam em média 4,38%, segundo o IPCC. e análises de especialistas.
“Essa situação em que a temperatura supera inclusive o aumento nas regiões com maior índice de desertificação do Brasil, bem como a redução das chuvas anuais e o aumento dos eventos de tempestades extremas, acredito que estejam diretamente ligadas ao uso e ocupação do solo, em práticas como desmatamento e queimadas”, afirma o professor Antoniel Fernandes, dos departamentos de Geografia e Biologia da PUC Minas.
Para ele, são situações preponderantes para aumento de temperatura e alterações nos regimes hídricos. “Eles impactam o entorno das nascentes, expondo-as a maior radiação solar. São ambientes frágeis. O impacto também é sentido no regime hídrico”, afirma o especialista.
Devastação
O ambientalista Almir Paraca tem trabalhos ambientais e culturais relacionados a Guimarães Rosa e ao povo do campo. Identifica os mecanismos que resultam nos eventos climáticos extremos que vêm dizimando o Cerrado e as veredas. “Tudo está ligado ao desmatamento e às queimadas. Os rios estão encolhendo. A plantação precisa de água, mas o rio não aguenta mais. do lençol freático seca. Na hora do plantio, perde mata ciliar para o plantio de eucalipto, para o fogo, fica cimentado e duro com o pisoteio do gado”, descreve.
Dados sobre desmatamento do Instituto Florestal do Estado de Minas Gerais (IEF-MG) corroboram a análise do ambientalista. O desmatamento sistemático do Cerrado mineiro apresentou três fases distintas na última década. De 2014 a 2017, um grau elevado, com uma média de 18.376 hectares perdidos por ano. Uma área equivalente a quatro vezes e meia a Floresta Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro, 78 vezes o Parque das Mangabeiras, em BH, e 116 vezes o Parque do Ibirapuera, em São Paulo.
Uma nova fase apresentou declínio entre 2018 e 2020, quando o desmatamento médio encolheu 57%, atingindo 7.997 ha. Mas voltou a crescer ainda mais entre 2021 e 2023, a uma taxa de 21.080 ha por ano, um aumento de 164%. No ano de 2023, o Cerrado mineiro perdeu 23.238,06 ha, o terceiro pior resultado da série, atrás de 2022 e 2017.
Memória
“Lajes escorregadias. As dificuldades dos bezerros. O ‘pulo’ da cachoeira. Bindóia vem pegar o bezerro pelo rabo”, descreveu Rosa em um de seus diários, em 20 de maio de 1952, enquanto acompanhava a manada que serviria de inspiração pelo trabalho dela. clássico Grande sertão: veredas.
Se hoje fizesse o mesmo caminho, o escritor e imortal veria o Rio do Boi correr entre pedras escuras alinhadas em cachoeiras. Mas, daqui para frente, as expectativas de Rosa certamente seriam frustradas. Seguindo pela estrada de terra vermelha, onde antes se via uma floresta tortuosa de madeiras nobres e frutos do Cerrado, agora se aproximam eucaliptos simétricos. Seus olhos veriam na curva à frente a morte lenta de seu mais belo caminho: é cortado ao meio, por uma ponte de concreto com algemas. Nem mesmo um fio flui através deles.
O buritis ainda existe, mas seu “ouro” verde e amarelo desaparece. Essas palmeiras, típicas das veredas, cuja mera presença antecipa ao longínquo camponês a proximidade de uma nascente, aos poucos vão perdendo as folhas em leque. De muitos resta apenas o toco, um poleiro de arara. As mais antigas, mortas e secas, desabaram, abrindo clareiras no que deveria ser a mata de galeria que protege a formação típica do Cerrado.
Nas margens da estrada, a poeira vermelha que sobe até a altura dos joelhos cobre os pés dos buritis que resistem. Ao longo do percurso do curso de água que Guimarães Rosa classificou como “permanente”, o solo está seco há algum tempo. Um emaranhado de espinhos cresce, tomando para si o que antes era um caminho.
Fontes secas
Em todo o Cerrado mineiro, os caminhos pedem ajuda, pois representam 406.037,8 hectares (ha), uma fração de 3,38% de todo o bioma nativo mineiro, segundo o Instituto Florestal do Estado de Minas Gerais (IEF-MG). . Os municípios que mais desmataram caminhos desde 2009, segundo o IEF-MG, foram Januária (554 ha), Prata (125,7 ha), Indianópolis (110,5 ha), Chapada Gaúcha (110 ha) e Santa Fé de Minas (96,7 ha). ). Este é um dado preocupante, pois segundo especialistas, a formação é um dos ecossistemas mais difíceis de recuperar.
Nem dentro das unidades de conservação os caminhos de Guimarães Rosa e Minas são seguros. Vários adoecem com suas nascentes no Parque Estadual Veredas do Peruaçu, na Área de Preservação Ambiental (APA) do Rio Pandeiros (estadual) e na APA Cavernas do Peruaçu (federal), que, juntas, compõem uma área de 555,58 mil hectares em teoria. protegidos, nos municípios de Januária, Itacarambi, Cônego Marinho e Bonito de Minas. A mesma região também conta com a APA Cochá Gibão (296.422 hectares), somando uma área teoricamente preservada de 852 mil hectares na região.
Com extensão de 31 mil hectares, nos municípios de Januária, Cônego Marinho e Bonito de Minas, o Parque Estadual Veredas do Peruaçu concentra seis trilhas. A maior delas é a Vereda Peruaçu, com 45 quilômetros de extensão. A unidade é administrada pelo Instituto Estadual de Florestas (IEF).
“Todos os caminhos do Parque Peruaçu secaram sem sofrer nenhum incêndio”, testemunha João Roberto Barbosa de Oliveira, gestor da unidade de conservação há 30 anos. O gestor afirma que o fato dos caminhos morrerem em uma área de preservação ambiental demonstra as consequências das mudanças climáticas. Com o gestor, foram percorridos cerca de 240 quilômetros dentro do Parque Estadual Veredas do Peruaçu e da APA Cavernas do Peruaçu, onde documentou os caminhos secos e buritis mortos.
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