Para a ministra Luciana Santos, da Ciência, Tecnologia e Inovação, o Brasil vive um paradoxo na pesquisa científica. Embora ocupe posição de destaque entre os 13 países mais ativos em explorações e estudos acadêmicos, isso não se traduz em produtos e serviços inovadores. Existe uma barreira histórica entre a universidade e o mercado, que impede esta colaboração e dificulta o desenvolvimento de novos produtos. “Por outro lado, o mercado não deve ter preconceitos, pois a energia criativa flui melhor quando há colaboração entre público e privado”, afirmou, na entrevista que concedeu às jornalistas Denise Rothenburg e Samanta Sullum, na edição que foi ao ar, ontem, do CB.Poder — parceria entre Correio Braziliense e TV Brasília. Há poucos dias, o governo federal anunciou um investimento de R$ 23 bilhões em inteligência artificial. A preocupação inicial é converter a aplicação desses recursos em ações no serviço público por meio da IA, mas também há a preocupação de que essa tecnologia não seja errada — por isso ela considera essencial estabelecer um marco regulatório. “Acreditamos firmemente na necessidade desta regulação, especialmente considerando as ferramentas de inteligência artificial e a tecnologia associada. Esta área pode apresentar ameaças individuais e o debate ético é inevitável”, destacou. Abaixo estão os principais trechos da entrevista.
O governo federal anunciou R$ 23 bilhões para um plano de investimentos em inteligência artificial. Qual é o foco deste plano?
Foi construído por muitas mãos e conhecemos os impactos que a inteligência artificial está causando na economia e nas novas oportunidades. O foco está dividido em duas fases. A primeira é o impacto imediato e, para isso, prevemos 31 ações no serviço público. Consolidamos alguns acordos em andamento com os Ministérios da Saúde, da Educação, do Trabalho, do Desenvolvimento Social e da Agricultura. As entregas começam em dezembro, como parte de um plano piloto para melhorar a qualidade do serviço público à população. Além disso, há a dimensão da infraestrutura para os próximos cinco anos. A capacidade de processamento de dados é essencial para a inteligência artificial e a ciência de dados. Estamos planejando construir um supercomputador e o escolhido é o LNCC (Laboratório Nacional de Informática), em Petrópolis (RJ), Santos Dumont. Investiremos para que ele esteja entre os cinco melhores supercomputadores do mundo em cinco anos. Além dessa infraestrutura, teremos data centers espalhados por regiões do país. Uma premissa importante é a sustentabilidade, pois computadores, supercomputadores e até data centers consomem muita água e energia. Se o Brasil adotar uma matriz renovável, isso se tornará um diferencial competitivo. Outro aspecto crucial da infraestrutura é o treinamento. Dado que a inteligência artificial terá impacto no emprego, precisamos de nos concentrar nas áreas que sentirão esta mudança rapidamente. Portanto, é necessário capacitar pessoas para a nova cadeia produtiva da IA, tanto no setor público quanto empresarial, com regulamentação adequada.
O anúncio desse plano foi o resultado mais sólido da Conferência Nacional de Ciência e Tecnologia, que aconteceu esta semana?
Vale ressaltar que a conferência não acontecia há 14 anos. A comunidade académica e científica e o setor privado envolvido na inovação parecem estar travados, sem a evolução que este processo exige. Desde o ano passado, o ministério realiza conferências municipais, estaduais e regionais. Houve conferências temáticas e uma novidade foi a conferência gratuita, incluindo a Conferência Girls and Women in Science. Como primeira mulher ministra, não poderia ser diferente de um evento que debateu as condições em que as mulheres trabalham em ciência e tecnologia no Brasil.
Como o Brasil pode melhorar em inovação no ambiente internacional? Qual é a nossa vocação?
O Brasil enfrenta um paradoxo. Embora tenhamos uma produção científica extraordinária, ocupando posição de destaque entre os 13 países mais ativos em pesquisa, essa excelência não se traduz em produtos e serviços inovadores. O Sistema Nacional de Ciência e Tecnologia é ousado e poderoso, mas a ligação com o setor privado tem sido historicamente um obstáculo. A universidade, berço do conhecimento, precisa superar seus muros e ter sinergia com o mercado. Por outro lado, o mercado não deve ter preconceitos, pois a energia criativa flui melhor quando há colaboração entre o público e o privado. Como ex-prefeito, tive a oportunidade de beber na fonte de produção científica da universidade, buscando soluções para questões como dengue e infraestrutura urbana. Contudo, a criminalização de cientistas e professores persiste. A importação de insumos e equipamentos ainda é vista com desconfiança, como se fosse uma volta à universidade. O Marco Legal da Ciência e Tecnologia é muito importante e busca mitigar esses medos e promover uma relação mais fluida entre a academia e o setor privado. A Embrapa é uma potência global; exportamos tecnologia. O SUS (Sistema Único de Saúde) conta com tecnologia social, portanto, temos condições de saltar muito mais longe e mais rápido nos rankings de inovação.
Como resolver a perda de cientistas do Brasil para o exterior, devido aos baixos salários nas universidades?
As empresas demonstram proatividade na busca de talentos e na oferta de salários bastante competitivos. No entanto, a nossa base produtiva e os recursos do serviço público não conseguem acompanhar a concorrência das ofertas de emprego, especialmente nas áreas mais complexas, como os setores aéreo, microeletrónico e cibersegurança, que são críticos. Quando um profissional brasileiro adquire expertise na área, começa uma corrida para aproveitar seu conhecimento. Isso não é novo, é algo histórico.
No ano passado, houve um reajuste linear de 9% nos salários dos servidores públicos, algo que não ocorria há sete anos. Porém, é preciso ir além desse aumento para valorizar a produtividade. Como podemos atingir esse objetivo?
Em primeiro lugar, é fundamental reconhecer os resultados obtidos pelos servidores. Recompensar a eficiência e o desempenho é essencial para motivá-los e incentivar um serviço público de qualidade. Além disso, devemos buscar mecanismos que estimulem a produtividade, como metas claras e avaliações periódicas. Além das questões relacionadas à carreira e à produtividade, é fundamental considerar como estimular o trabalho dos especialistas em inteligência artificial. Atualmente, muitos desses profissionais, após obterem o doutorado, acabam migrando para o setor privado estrangeiro. A retenção de talentos é crucial para o desenvolvimento da nova indústria brasileira.
Quais partes do serviço público se beneficiarão mais com este novo plano?
Na saúde temos essas ações imediatas. O Brasil pretende se tornar produtor de Insumos Farmacêuticos Ativos (IFAs) e exportar esses produtos. Um dos objetivos é alcançar autonomia e soberania em relação a alguns insumos e até equipamentos. Algumas universidades estão desempenhando um papel fundamental neste processo. Na Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) estão sendo desenvolvidos equipamentos de ressonância magnética genuinamente brasileiros. Além disso, na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), está em andamento a fase final de validação da Spintech, vacina contra a Covid-19 inteiramente desenvolvida no Brasil. Para apoiar essas iniciativas, o fundo destinou R$ 1,84 bilhão no ano passado, com foco no complexo industrial da saúde. Este investimento visa reforçar a produção de insumos e equipamentos essenciais para a saúde, dinamizando o sector e contribuindo para a independência do país nesta área. A inteligência artificial irá acelerar significativamente estas soluções, que vão desde a logística. Um exemplo que gostaria de citar é quando era prefeito: a compra pública de medicamentos às vezes nos fazia chorar, pois a logística envolvida era tão extensa. Tínhamos vários RPAs (Robotic Process Automation) na região administrativa, mas ainda havia lacunas nas unidades de saúde.
Como anda a discussão entre Congresso e Poder Executivo sobre a lei que define os marcos da inteligência artificial?
Este é um projeto de autoria do senador Rodrigo Pacheco (PSD-MG, presidente do Poder Legislativo). O relator é o senador Eduardo Gomes (PL-TO). Dentro do ministério, estamos fornecendo subsídios técnicos para apoiar a discussão desta lei. A coordenação política do processo é responsabilidade do núcleo governamental, com uma coordenação institucional bem alinhada. No Congresso, essa lei é discutida em consonância com as diretrizes do governo. Acreditamos firmemente na necessidade deste regulamento, especialmente tendo em conta as ferramentas de inteligência artificial e a tecnologia que lhes está associada. Esta área pode apresentar ameaças individuais e o debate ético é inevitável. Até que ponto a inteligência artificial pode ser usada sem enfrentar questões éticas? Começando pelos direitos autorais, muitas soluções de IA circulam sem mencionar suas fontes de informação. Embora a abertura de dados seja positiva, os direitos de autor muitas vezes não são respeitados. Além disso, existem preocupações relacionadas com a privacidade e a utilização de notícias falsas com ferramentas cada vez mais sofisticadas.
*Estagiário sob supervisão de Fabio Grecchi
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