Aos pés da santa cruz, eles se ajoelharam, oraram e pediram a Deus que mandasse chuva. Depois, molharam a base da árvore, que traz símbolos do martírio de Jesus Cristo, resgatando uma tradição milenar do interior de Minas Gerais. Na manhã ensolarada de ontem, quatro mulheres moradoras do bairro histórico do Morro Vermelho, em Caeté, Grande BH, realizaram o ritual de levar água até o cruzeiro, próximo à Capela do Rosário, para que a seca que já dura mais de cinco meses na região.
“Estou sempre aqui, mas há muitos anos que não venho aqui para molhar os pés no cruzeiro. Quero dizer, então, que desta vez a seca é longa”, disse Eunice Mota Araújo Sanches, 77 anos. Católica fervorosa, Eunice carregava na mão direita a imagem de Jesus carregando a cruz e, na outra, um buquê de flores. “Rogamos a Deus que envie boas chuvas, cheias de bênçãos, para nós e para o mundo inteiro”, disse ela com os olhos voltados para o céu.
A um quilômetro da Igreja Matriz Nossa Senhora de Nazaré, padroeira da comunidade, a cruz fica no topo de um caminho hoje coberto de poeira, e de onde se avista a mata destruída pelo incêndio. “Até o nosso Red Hill foi atingido. Olha que escuro está”, comentou Patrícia Regina Sanches, ao lado de Marinalva Mota Sanches Mendes, filha de Dona Eunice, e de sua tia, Maria Antônia de Araújo.
Com cerca de mil habitantes, o Morro Vermelho fica a 12 quilômetros do centro de Caeté. A manhã foi tranquila, algumas pessoas passando pelo gramado em frente à igreja, outras sentadas nos bancos da varanda de suas casas. Eram 10h quando o quarteto se dirigiu ao cruzeiro carregando baldes, um galão, garrafas e um pequeno regador. “Tudo o que fazemos é pela fé. Atualmente nada realmente me incomoda, nem mesmo os problemas do dia a dia. Mas a falta de água, os incêndios… ah! eles me preocupam muito”, disse dona Eunice.
A urgência se espalha. “Precisamos de água para beber, regar as plantas, dar aos animais, respirar. Quem vive sem água?”, destacou Maria Antônia, que subiu o morro com um buquê de amor escondido, lentilha, russélia e melissa. Na blusa branca, estampa de Nossa Senhora Aparecida. “A quem devo orar para acabar com a seca?” pergunta o repórter. Cada um deu a sua opinião: “A Deus e a Jesus Cristo, a Nossa Senhora das Dores, para acabar com a dor, a Nossa Senhora da Misericórdia, para ter misericórdia de nós”.
Ao longo da trilha, foi impossível não ver e lamentar os estragos deixados pelas chamas na vegetação. “Tivemos muitos problemas, este mês não foi fácil. Domingo, então nem fale comigo. Tem muita gente com problemas respiratórios, fumaça por todo lado, gente levada para hospital, fuligem dentro de casa. Se a chuva não vier logo, parece que vamos sufocar”, disse Marinalva, carregando a imagem da padroeira do Brasil, Nossa Senhora Aparecida.
Orações, cânticos, união e devoção. “Jesus Cristo, tem piedade de nós”, repetiu o quarteto durante um período da viagem. Na sequência, Eunice, Marinalva, Patrícia e Maria Antônia cantaram: “Desculpe, senhor! Manda chuva para molhar a terra, os frutos.” Em seguida, Marinalva apontou árvores queimadas: “Além do fogo tem poluição, né? Pedimos por todos.”
A chegada ao cruzeiro despertou muita emoção, pois houve orações individuais e coletivas. A água da terra foi derramada para atrair a água do céu, e todos colocaram as mãos no cruzeiro. Marinalva pediu licença e leu parte do Salmo número 65, muito apropriado para o momento: “Visitaste a terra e a embriagaste; você multiplicou sua abundância. O Rio de Deus está cheio de água; você providenciou o trigo deles, pois assim preparou a terra: irrigou seus sulcos, nivelou seus torrões, amoleceu-os com as chuvas, abençoou seus brotos”.
Ao retornarem, com os rostos iluminados pelas orações, as mulheres voltaram para casa e contaram histórias do Morro Vermelho, citando um ex-morador, Sudário José Leal, que nunca deixou de realizar o ritual. “De mãos dadas, rezaram um trecho de outro salmo, demonstrando esperança coletivamente: “O Senhor é meu pastor, nada nos faltará”.
ORIGEM DO RITUAL
De onde vem a tradição de dar água aos navios de cruzeiro do distrito? Tudo começou no século XVIII, quando uma cruz foi colocada pelos devotos no topo do morro que deu nome ao Morro Vermelho. Neste local começaram a ser celebradas missas campais, após longas peregrinações a pé. A fé inabalável no poder da Santa Cruz, com os símbolos do martírio de Cristo, difundiu-se e as peregrinações aumentaram.
Com o passar do tempo, os moradores começaram a subir ao topo do morro por outro motivo: rezar para que a chuva chegasse. “Isso acontece desde os anos 1700, quando começaram as romarias subindo a serra, carregando nas costas pilhas de pedras e galões de água, que eram depositados ao pé da cruz sagrada”, diz o jornalista Geraldo Lopes, responsável pelo site morrovermelhomg .com.br.
Lopes diz mais: “As revelações dos antepassados são muitas. Dizem que, depois das peregrinações sacrificiais, um ou dois dias depois as águas do céu começam a rolar, esverdeando as plantas e transformando flores em frutos por toda parte. um dos devotos, o agricultor Sudário Leal, certa vez levou pedras e água para a montanha e voltou de lá sob forte chuva. A tradição é mantida até hoje pelos fiéis no auge da seca.”
Memória, cultura e tradições se unem no trezentos anos do bairro do Morro Vermelho, palco de grandes acontecimentos, entre eles a Guerra dos Emboabas (1707-1709). Segundo os registos, aqui ocorreu a primeira eleição direta para governador das Américas, na ausência da coroa portuguesa, por Manuel Nunes Viana (1670-1738).
Segundo pesquisas, o atual bairro abrigava mais de 10 mil pessoas no século XVIII e hoje conta com cerca de mil habitantes. Cercada por montanhas, tendo como referência a Igreja Nossa Senhora de Nazaré, a vila possui um rico conjunto de centenas de minas de ouro, sofisticados contadores do início do século XVIII e ruínas de um arraial que serviu de entreposto comercial aos bandeirantes. , tropeiros e mascates.
No Morro Vermelho, é realizado um ritual secreto na Quarta-feira de Cinzas que marca o início da Quaresma. Como acontece há mais de 200 anos, um grupo de homens – as mulheres estão proibidas de entrar – reúne-se na Igreja Paroquial de Nossa Senhora de Nazaré para lavar, com cachaça, a imagem do Senhor dos Passos. Durante o ato, que dura uma hora, a bebida é recolhida em um cocho de madeira e depois armazenada em uma garrafa. A tradição diz que a aguardente tem poderes milagrosos, tornando-se um santo remédio para as enfermidades do corpo e da alma “de quem tem fé”, segundo os moradores.
As orações das freiras
No dia 13 de setembro de 1999, após 139 dias de seca, as mãos se ergueram em orações e os lábios cantaram canções pedindo água do céu. Neste domingo, moradores da zona rural de Macaúbas, a 12 quilômetros do Centro de Santa Luzia (RMBH), participaram de uma procissão com a imagem de Nossa Senhora das Dores, “a quem, tradicionalmente, as poucas pancadas de chuva neste horário são atribuídos”, conforme relato de um morador. As irmãs do Mosteiro de Macaúbas, que comemorou 310 anos de fundação no dia 1º de setembro de 2024, acompanharam a procissão. “Pedimos a graça da chuva e acredito que os nossos pedidos serão ouvidos”, disse a então abadessa do mosteiro, Maria Imaculada de Jesus Hóstia. Na procissão chuvosa, que levou dezenas de fiéis a um trecho da rodovia MG-020, no sentido Jaboticatubas, foi cantado o hino de louvor a São Francisco de Assis, padroeiro da natureza. Os pedidos foram feitos num momento em que o fogo cercou a monumental construção construída desde 1714, atingindo grande parte da Área de Preservação Ambiental próxima ao mosteiro. Depois de 25 anos, a comunidade de freiras Concepcionistas pede mais uma vez a ajuda de Deus para proteger suas vidas e o patrimônio nacional.
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