Membro da Academia Brasileira de Ciências e uma das maiores autoridades em Cerrado, a professora da Universidade de Brasília Mercedes Bustamante reconhece avanços no controle do desmatamento no bioma. Mas considera que a situação ainda é preocupante, exigindo ações “urgentes”.
O especialista acredita que a solução para mitigar as agressões ambientais passa por um conjunto de ferramentas. É preciso fortalecer a atuação dos estados e municípios na defesa do meio ambiente. No caso específico do Cerrado, o especialista defende incentivos aos proprietários rurais para desmatarem porções menores do bioma, abaixo do permitido pelo Código Florestal.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida aos jornalistas Carlos Alexandre de Souza e Adriana Bernardes.
Em relação ao desmatamento e emissão de gases poluentes, como você vê a situação atual?
Dados divulgados recentemente, divulgados pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), mostram redução do desmatamento na Amazônia. O Inpe monitora o que chamamos de corte raso — remoção total ou quase total de uma área de vegetação — e mostra uma desaceleração do desmatamento no Cerrado.
Mas, infelizmente, o desmatamento ainda está em níveis muito elevados, tanto na Amazônia, com cerca de 6 mil km², quanto no Cerrado, com cerca de 8 mil km². No caso do Cerrado em especial, considerando um bioma que já perdeu 50% de sua cobertura.
Então aqui as ações são realmente muito urgentes, porque falta muito pouco.
É mais importante ver o filme do que apenas a fotografia…
O filme significa o que já perdemos, por isso dá ainda mais peso à conservação dos remanescentes.
Sempre tenho muito cuidado ao afirmar que ainda temos 50% de Cerrado, porque isso não significa que esses 50% estejam em condições ideais. Estamos perdendo grandes áreas contínuas, deixando pequenos fragmentos degradados.
A conservação dos 50% que restam também é motivo de preocupação. 2024 foi um ano complicado, tivemos incêndios, grandes incêndios florestais. Aquilo que não foi convertido, mas apresenta um processo de degradação.
Fala-se muito que o Cerrado é resiliente, mas chega um momento que a resiliência chega ao fim…
Este é um ponto importante. Possui resiliência, mas essa resiliência também depende do fato de não estarem presentes fatores estressantes para o bioma.
A situação que observamos hoje é que, além do desmatamento e da degradação, vemos a transformação que as próprias mudanças climáticas globais estão causando no Cerrado.
Ele tem enfrentado múltiplas fontes de estresse e a resiliência também tem limite, certo? Chega um ponto em que você não consegue mais recuperar seu sistema.
O que poderia ser feito?
O primeiro ponto, efetivamente, é parar o desmatamento. Não é apenas o desmatamento ilegal. Precisamos parar o desmatamento sem adjetivos, porque, segundo o Código Florestal, a Lei de Proteção da Vegetação Nativa, existe a possibilidade de autorizar até 80% de conversão em propriedades privadas. Significa que temos que pensar “bom, posso autorizar menos, porque a situação hoje já é muito crítica?”. Se continuarmos a permitir legalmente a supressão da vegetação ao nível de 80%, não haverá mais Cerrado.
O governo destacou que os incêndios deste ano ocorreram em propriedades privadas. Existe, então, uma questão de propriedade?
O Cerrado tem uma característica complexa, é um desafio. É a questão da terra. Na Amazônia, a maior parte das terras pertence à União. A Amazônia possui uma grande extensão das chamadas “áreas não designadas”, que a União pode destinar à unidade de conservação.
Mas no Cerrado, a maior parte da propriedade da terra é privada. Então a União tem pouco espaço, mas poderia apoiar a criação de novas unidades de conservação. Isto significa que, aqui, o processo tem de ser efectivamente um processo de consulta e conciliação entre o uso da terra e a conservação. Sem conservação, não teremos agricultura.
Qual seria o conjunto de ações para frear o desmatamento no Cerrado?
Uma maneira é fortalecer os órgãos ambientais estaduais, porque são eles que autorizam os estados. (É importante) que eles tenham 40%, porque a propriedade deles já está numa bacia muito degradada, muito desmatada, e precisamos conservar esses fragmentos”.
E ao mesmo tempo, para o proprietário que diz “bom, não vou usar 30% do meu imóvel tanto quanto poderia. Que incentivo adicional posso ter para manter isso?”
A União Europeia decretou que, a partir de 2025, haverá maiores restrições aos produtos agrícolas de exportação brasileiros. Qual é a saída?
Essas restrições são comentadas há muito tempo. Precisamos ter a perspectiva de que isso vai acontecer. Para as grandes empresas, começam a ver um risco reputacional de terem os seus produtos associados a um mercado consumidor que exige cada vez mais rastreabilidade, sustentabilidade e que as suas cadeias estejam associadas a uma produção que não respeita os direitos humanos, o ambiente, etc.
Sempre digo que é importante separar o joio do trigo. Quem está produzindo bem, que incentivos receberão, que apoios terão nessas negociações?
Há dúvidas até na União Europeia.
Acho que eles perceberam que nem eles estavam preparados para isso. Como realizariam esse processo de auditoria do que foi produzido? Não é trivial. Mas, por outro lado, o adiamento não significa que não deva ser visto. Ganhamos algum tempo, certo? É importante usar esse tempo com sabedoria, preparar-se e apresentar um argumento claro do Brasil.
Quando falamos do setor agrícola, conheço muitos que estão lá tentando efetivamente fazer bem, lidar com cadeias ilegais, porque é muito difícil ficar do lado da legalidade se tem alguém que está produzindo de uma forma que não é correta e não há necessidade de pagar todos os custos em que você incorre por ser legal. Dentro do próprio sector, esta diferenciação precisa de ser clarificada.
É preciso mostrar também que produzir de forma sustentável também gera maior valor agregado…
Exatamente. Quem se beneficia com isso é a própria sociedade e a população brasileira. É pela saúde dos brasileiros. Podemos estar em um ambiente mais preservado, com direito a alimentação de qualidade.
Há consenso de que houve progresso na agenda ambiental em 2023. Este ano, esse progresso continuou ou paramos?
Considero 2023 um período de recuperação, de reconstrução. Mas, por todas as razões que conhecemos, este processo tem uma velocidade que talvez não tenha sido a que prevíamos inicialmente. Houve todo um aspecto de recuperação de pareceres, legislação, programas ambientais.
E em 2024 ocorreram efetivamente eventos extremos. Esta é uma mensagem importante para todos os países. Eles (os desastres climáticos) estão aí e, quando chegam, têm um enorme impacto económico. Você olha para um estado como o Rio Grande do Sul: a recuperação não será trivial. Talvez já não esteja nas manchetes, mas os problemas ainda existem. Muito sério.
Estamos mais perto do ponto sem retorno?
O Acordo de Paris estabeleceu a estabilização do aumento da temperatura em 1,5ºC até 2100. Veja, o regresso aos níveis pré-Revolução Industrial não está nesse mapa. Estamos falando de uma estabilização do aumento da temperatura.
Mesmo assim, com o que está hoje em cima da mesa, apresentado por países promissores, não chegaremos aos 1,5ºC. Estamos acima, com 2ºC a 3ºC. São questões que temos que observar efetivamente o que pode ser feito no momento. Já temos um conjunto de soluções que podem ser utilizadas e muitas delas envolvem o setor do uso da terra, a questão da conservação biológica, a questão das práticas sustentáveis na agricultura.
A fase de transição já passou…
Sim. A resposta tem que ser muito rápida na redução das emissões. Na linguagem climática, chamamos redução de emissões de mitigação. E existe o que chamamos de adaptação. Mas a adaptação também tem limites, certo? Por exemplo, a nossa capacidade de tolerar o aumento das temperaturas. Fisiologicamente é limitado.
As pessoas morrem por causa do calor. As ondas de calor serão um problema muito grande no Brasil. Isso é um limite, não tem como. Para outros sectores, por exemplo, com a subida do nível do mar, há um limite para a adaptação. Quanto vou tolerar para as cidades litorâneas, se no Brasil temos uma concentração enorme de grandes cidades no litoral. Se a redução das emissões não funcionar bem, até a adaptação se tornará muito difícil.
E como lidamos com isso?
A sociedade civil, as organizações, as empresas, tudo isso faz parte do que chamamos de governança ambiental, que é mais do que o governo. Estes sectores devem começar a exercer maior pressão sobre esta necessidade, para que a acção e a vontade política possam ser expressas de uma forma mais contundente.
É importante lembrar que se o Brasil cumprir o seu papel, o mundo inteiro se beneficia, porque a atmosfera é um bem comum global. Mas se adaptarmos aqui no Distrito Federal, não vai resolver o problema do Rio de Janeiro. A adaptação é uma questão local.
O governo federal tem um papel importante, sim, de articular, financiar e apontar caminhos, mas estados e municípios terão que se organizar para isso.
Qual é o papel das universidades no combate às tragédias climáticas?
São as instituições que geram a maior parte do conhecimento científico no Brasil e têm trabalhado muito também na agenda climática. Eles também desempenham um papel em apontar para a adaptação. São eles que formam os professores.
Se quisermos professores que possam trabalhar nas escolas em matéria de educação climática, eles serão formados nas universidades. Mas também desempenham um papel muito importante no processo de transformação ecológica do Brasil.
Muitas áreas do conhecimento ou profissões terão talvez um papel menos relevante no futuro, e novas profissões surgirão neste quadro de transformação ecológica. Quem irá treinar ou requalificar esses novos profissionais? Serão as universidades.
*Estagiário sob supervisão de Carlos Alexandre de Souza
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