Árvores retorcidas, com casca grossa e raízes profundas testemunham a resistência do Cerrado ao tempo e à ação humana. Entre a vegetação rasteira, animais de todos os tamanhos encontram abrigo, e rios cristalinos começam como artérias, distribuindo água para grande parte do Brasil. Considerada o berço das principais bacias hidrográficas do país, a vegetação enfrentou rápidos incêndios em 2024 que ameaçaram transformar em pó um dos maiores pontos de diversidade de todo o planeta.
Especialistas alertam que os incêndios criminosos já estão comprometendo a capacidade de recuperação da região, colocando em risco não só a biodiversidade, mas também a segurança hídrica e climática de todo o país. Os alertas tornam-se ainda mais urgentes para 2025 e sem ação imediata, o segundo maior bioma do país corre sério risco.
Segundo dados do Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (IPAM), o Cerrado enfrentou um ano devastador, com incêndios atingindo cerca de 9,6 milhões de hectares —a maior área já registrada desde que o monitoramento do MapBiomas Fogo começou em 2019. Ane Alencar, diretora do instituto, destaca que esse número é 93% superior ao registrado em 2023, quando 4,9 milhões de hectares foram consumidos pelo fogo.
O fato mais alarmante é que grande parte das áreas queimadas corresponde à vegetação nativa do bioma, considerada a mais rica em diversidade: “Grande parte do que queimou no bioma foi vegetação nativa, principalmente as áreas que consideramos no biomas arbustivos como vegetação do tipo savana, que são essas áreas de cerrado, stricto sensu, que possuem componente gramíneo, componente de arbustos e árvores”, explica.
Segundo levantamentos do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), um dos órgãos responsáveis pelo cuidado e manejo do fogo no Cerrado, os incêndios no bioma têm origens diversas. A única causa natural são os raios, geralmente no início da estação chuvosa. Durante a estação seca, a maioria dos incêndios é causada pela ação humana, seja por descuido nas atividades agrícolas, queima de resíduos ou limpeza de terras, quando o fogo fica fora de controle, ou intencionalmente, como nas queimadas ilegais para expansão de terras. ou por retaliação.
Há também incêndios causados por acidentes com linhas de transmissão, máquinas agrícolas ou veículos. Porém, Alencar explica que, embora muitas vezes associado à destruição, o fogo tem um papel único no Cerrado. “Nem todos os incêndios no Cerrado são ruins. Muitas espécies são resistentes, adaptadas e até dependem do fogo para seu ciclo de vida. O impacto depende da intensidade, frequência, intervalo e período em que ocorre”, explica Ane.
Sarah Fontoura, pesquisadora em ecologia e coordenação do manejo integrado do fogo do ICMBio, afirma que o bioma possui grande capacidade de recuperação natural devido à alta resiliência de sua vegetação e fauna. No entanto, “em alguns locais, esta perturbação e degradação tem sido tão intensa que a própria natureza não consegue recuperar por si só”.
Assim, práticas de recuperação são necessárias para restaurar áreas degradadas e garantir que os serviços ecossistêmicos perdidos sejam restabelecidos. Fontoura alerta ainda para os impactos hídricos causados pela destruição do Cerrado, que atingem não só o local, mas toda a bacia hidrográfica. “Esses impactos hídricos não são sofridos apenas localmente, mas em toda a bacia hidrográfica”, afirma. Segundo ela, a vegetação associada aos cursos de água é mais sensível ao fogo, pois “não evoluiu com a presença da perturbação e, portanto, não desenvolveu adaptações ao fogo”.
Pouca visibilidade
Sarah Fontoura explica ainda que, historicamente, os ecossistemas florestais recebem mais visibilidade e valorização, enquanto ambientes abertos, como as savanas e o Cerrado, muitas vezes são considerados apenas como degradação florestal. Expressões como “savanização florestal” são usadas para se referir a florestas degradadas, refletindo esta visão distorcida. Ela explica que essa falta de reconhecimento da importância do Cerrado tem consequências significativas, como o aumento da pressão exploratória sobre o bioma.
Além disso, a facilidade de cultivo no Cerrado, devido ao relevo mais plano e ao acesso facilitado a maquinários e infraestrutura, torna o bioma mais vulnerável. “Quando você não vê a importância daquele bioma, acaba tendo uma pressão maior de exploração do cerrado”, diz Fontoura.
O Cerrado é considerado um dos 35 hotspots (locais que concentram alta biodiversidade) do mundo, devido à sua grande variedade de espécies e ao fato de muitas delas serem exclusivas do bioma. Isabel Schmidt, coordenadora da Rede Biota Cerrado, afirma que muitas espécies do Cerrado já foram extintas, enquanto outras nem foram registradas.
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Cerca de 40% das plantas do bioma são endêmicas, espécies que se desenvolvem exclusivamente em determinada região geográfica. Schmidt destaca que, devido à alta diversidade e ao elevado endemismo do Cerrado, a devastação do bioma é ainda mais preocupante. “Dependendo da área que você desmata no Cerrado, você pode simplesmente extinguir uma espécie inteira”, diz ele.
Apesar do bioma ser o segundo mais degradado do país em 2024, o Cerrado ainda é pouco estudado se comparado a biomas como a Amazônia e a Mata Atlântica. A escassez de estudos está relacionada com “poucas pesquisas e poucas instituições nessas áreas tropicais, muitas vezes localizadas em regiões mais pobres”, como destaca o pesquisador.
Schmidt ressalta que, quando perdemos a vegetação nativa, também “perdemos diversidade”: “Se alguma dessas áreas não estudadas tivesse algum potencial, por exemplo, farmacêutico, que pudesse nos ajudar a curar uma doença e assim por diante, perdemos sem nem saber Quando temos uma grande perda de vegetação nativa, temos uma grande perda de diversidade”, explica o especialista.
Agronegócio e o futuro
É inegável o quanto o agronegócio no Cerrado brasileiro é essencial para a economia, sendo responsável por cerca de 60% da produção agrícola, com destaque para a soja, que ocupa 48% da área plantada do país. Contudo, a expansão agrícola é um dos principais vetores de impactos ambientais, como o desmatamento e a conversão de terras, afetando os ecossistemas e a qualidade da água, especialmente no Cerrado. Isso compromete a produtividade, como evidenciado pela perda de 11,9 milhões de toneladas de soja na safra 2023/24.
Isabel Schmidt acredita que até 2025 o Cerrado precisa investir no agronegócio responsável. A atividade agrícola é considerada uma das principais causas das alterações climáticas. Porém, o especialista alerta que quanto mais o bioma se degrada, mais difíceis ficam as condições para o agronegócio. “Então, ao mesmo tempo que o agronegócio é o vilão do desmatamento e o vilão das mudanças climáticas, ele é também uma das primeiras vítimas”, afirma.
Maurício Macron, do ICMBio, destaca a evolução no entendimento do uso do fogo no Cerrado, enfatizando a necessidade de uma gestão integrada. Ele explica que, em vez de ver o fogo como inimigo, é fundamental compreender o seu papel nas necessidades da sociedade e do bioma.
“Estamos em um país com um avanço na história do manejo integrado, por isso não olhamos mais o fogo como inimigo. A sociedade tem suas necessidades e o cerrado também tem sua necessidade de manejo do fogo”, afirma.
Para Macron, o fogo controlado, quando bem regulamentado, pode ser benéfico, e é importante garantir que os agricultores que utilizam esta prática o façam dentro de um sistema legal e seguro. “O fogo é permitido e continuará sendo feito por muita gente do campo nessa situação, então discriminar toda essa história é algo que ajuda muito”, avalia.
Ele ressalta que os órgãos públicos devem garantir condições adequadas para que o uso do fogo controlado seja seguro e autorizado quando necessário. “Para tal, os organismos públicos estão em condições de dar a devida autorização quando for possível fazê-lo”, acrescenta.
Na avaliação de Isabel Schmidt, se o Brasil quiser manter sua relevância no mercado global, é fundamental preservar a vegetação natural, responsável por recursos vitais como água, solo fértil e controle de pragas.
“O agronegócio brasileiro tem orgulho de ser importante para a balança comercial brasileira, porque exportamos muitas commodities, basicamente soja, milho e algodão. Não teremos mais essa importância global se não cuidarmos da nossa vegetação natural, que é quem nos dá água, quem nos dá solo fértil, quem nos dá o controle de pragas agrícolas através dos animais nativos”, destaca.
*Estagiário sob supervisão de Rafaela Gonçalves
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