As enchentes que devastaram quase todo o território gaúcho, entre abril e maio deste ano, deixaram muitas cicatrizes. Mais de 2,3 milhões de pessoas foram afetadas e muitas delas tiveram de abandonar as suas casas para se manterem protegidas. O Correio conversou novamente com gaúchos entrevistados durante o desastre para saber como foi a etapa da reconstrução e as expectativas para o novo ano.
“O recomeço foi muito triste, foi tudo muito horrível. Móveis na rua, que tiraram de dentro do apartamento, cheiro horrível de esgoto, muita lama na rua”, lembra Iolanda Espíndola Sarmento, 73 anos .”O condomínio onde moro estava tudo aberto, eu podia até entrar sem autorização, sem nada. Estava tudo muito úmido e o que tinha no apartamento estava estragado”, conta a aposentada sobre sua volta para casa no bairro Humaitá, um dos mais afetados pela enchente do Guaíba, em Porto Alegre.
A reportagem conversou pela primeira vez com a gaúcha em maio, enquanto ela aguardava tratamento no centro de acolhimento em Capão da Canoa, no Litoral Norte do estado. A prefeitura montou uma estrutura para receber cerca de 100 mil pessoas que saíram da capital em busca de um lugar seguro.
Na época, ela disse que abrigou 15 vizinhos em seu apartamento na zona norte da cidade, pois morava no terceiro andar, onde a água não chegava. Tiveram que abandonar o local, navegando sobre um colchão, depois de passarem muito tempo sem água, luz e gás. “Tinha um casal que guardava coisas no meu apartamento e, assim que voltei, tiraram para liberar espaço. Descobriram que meu filho também perdeu tudo na enchente e doaram uma geladeira para ele”, conta. o feliz aposentado.
Ao lado de Iolanda, no litoral do Rio Grande do Sul, estava sua amiga Sandra da Rocha, 65 anos, que mora no mesmo bairro de Porto Alegre. “Estava muito precário quando consegui voltar. O entorno do bairro Humaitá não tinha nada, não tinha estrutura. Até hoje vamos ao mercado que foi muito afetado e não tem quase nada. entulho por todo lado, lixo, lama”, lamenta o morador, que lembra os danos materiais e mentais causados pelas enchentes. “As consequências, vou te contar, foram perdas materiais, mas nossa saúde foi zero. Até hoje lido com depressão e ansiedade. Falo sobre isso e isso me emociona muito”, afirma.
Em maio, quando conversou pela primeira vez com o Correio, Sandra já relatava sintomas que restavam da tragédia, como ataques de pânico. Ela passa por acompanhamento psicológico para tratar a situação e pretende deixar o apartamento onde mora, com medo de outro episódio semelhante.
“Quero mudar para cá porque tenho muito medo das enchentes voltarem. Moramos perto do Guaíba e, se não escoarem, nosso rio vai transbordar de novo e a água vai chegar. chove mais um pouco, já temos aquela coisa de viver tudo de novo”, diz.
Desde que ocorreram as enchentes, o poder público começou a tomar medidas para tentar prevenir novos episódios. Na esfera municipal, a Prefeitura de Porto Alegre trabalha na recuperação dos diques que romperam, devido ao nível histórico mais alto do Rio Guaíba, de 5,73 metros. Procurados pelo Correio, não detalharam como isso está sendo feito.
No estado, a Secretaria de Reconstrução do governo do Rio Grande do Sul afirmou que já destinou R$ 4,1 bilhões para ações de reconstrução. Para enfrentar a crise meteorológica e seus impactos, foi criado o Plano Rio Grande, que é o programa de reconstrução, adaptação e resiliência climática, que propõe uma série de medidas para reduzir os impactos causados pelas chuvas.
“A atuação se dá em ações emergenciais, que são consideradas de curto prazo; ações de reconstrução, planejadas como iniciativas de médio prazo; e no eixo denominado ‘Rio Grande do Sul do futuro’, com projetos e obras de longo prazo”, informa o órgão em nota.
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Ajuda
Raquel Nunes, 25 anos, conversou com a repórter em Capão da Canoa também em maio, em uma barraca de saúde montada pela prefeitura. Ela aguardava atendimento médico para os sobrinhos que foram resgatados com ela de casa por um jet ski em Eldorado do Sul, na Região Metropolitana —a cidade foi uma das mais afetadas pelas chuvas e 80% das casas ficaram submersas .
Para ela, a ajuda do poder público foi essencial para retomar a vida. “Foi um choque chegar em casa e ver tudo vazio. A enchente levou tudo, tudo. , conseguimos comprar duas camas, dois guarda-roupas e ainda estamos no processo”, descreve Raquel sobre o retorno para casa.
“Ainda há vestígios de enchente nas casas, não consertaram muitas coisas e a maioria das pessoas foi embora, não queria voltar. Gostei muito da chuva, mas agora… Há algumas semanas começou chovia muito e vinham aquelas rajadas de vento, para levantar as coisas eu não tinha medo de chuva, agora toda vez que chove me dá uma sensação estranha”, completa a gaúcha.
Segundo Raquel, todos os sobrinhos resgatados estão bem, inclusive Davi, que completou oito meses recentemente —na época da enchente, ele tinha menos de um mês e foi retirado da casa onde estava hospedado pelos bombeiros. dentro de uma mochila. . Todos voltaram a morar em Eldorado e continuam reconstruindo, aos poucos, o que precisam em casa.
O auxílio mencionado por Raquel beneficiou cerca de 374 mil famílias gaúchas e foi criado pelo governo federal — que investiu, até setembro deste ano, R$ 1,9 bilhão para essa finalidade. Além disso, foi criado o Fundo do Plano Rio Grande (Funrigs), que garante orçamento federal para ajudar no enfrentamento das consequências sociais, econômicas e ambientais do evento climático extremo.
Segundo o ministério, diversos recursos foram destinados tanto para ações de reconstrução quanto de prevenção, por meio de programas como o Fundo de Defesa Civil, o programa de desassoreamento de rios e canais e o Volta por Cima, que ofereceu assistência às famílias atingidas pelas enchentes, já recebeu mais de R$ 250 milhões em repasses do Estado, entre outras iniciativas.
Avaliação política
As tragédias climáticas, sem dúvida, tiveram impacto político nas eleições municipais e os prefeitos que tomarem posse neste dia 1º têm uma responsabilidade acrescida em pensar políticas públicas para evitar novos desastres. A falta de atenção dos parlamentares e o descaso do governo com a prevenção foram críticas latentes aos governantes. Alguns conseguiram ser eleitos, enquanto para outros a catástrofe foi decisiva para a renovação política.
Entre os entrevistados pelo Correio, as opiniões estão divididas. Para Iolanda, o reeleito prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), “deu o seu melhor” durante as enchentes. Sandra, por sua vez, critica a reeleição do chefe do Executivo gaúcho. “As pessoas reclamam, reclamam, mas sempre elegem as pessoas erradas. Aí, depois, as coisas acontecem e eles querem reclamar. O prefeito precisa fazer muito mais para a nossa cidade voltar”, afirma. Melo foi ao segundo turno enfrentando a deputada federal, Maria do Rosário (PT), que foi fortemente rejeitada e obteve apenas 38% dos votos válidos.
Na Região Metropolitana, as enchentes foram o principal tema de campanha, o que gerou algumas mudanças, como em Eldorado do Sul, que elegeu Juliana Carvalho, do PSDB, adversária do então prefeito, Ernani de Freitas Gonçalves (PDT). Raquel diz que a frustração com o então governo municipal foi decisiva para que os votos migrassem para outro concorrente.
“Nas primeiras semanas, pós-cheia, a prefeitura não se esforçou muito. Demorou muito para retirar os móveis da frente das casas”, lamenta a gaúcha, dizendo que espera que, a partir de 1º de janeiro, se intensifiquem as ações para reconstruir a cidade.
Nova vida
Com a chegada de 2025, o povo gaúcho mantém a esperança de tempos melhores do que os últimos dois anos, em que o Rio Grande do Sul registrou grandes catástrofes climáticas. “Fico muito emocionado quando penso no que aconteceu, parece que foi para amolecer corações. Tenho consciência de que foi um aprendizado. No ano que vem, espero que tudo funcione melhor do que antes e que haja mais amizade” , aponta Iolanda.
Sandra resume toda a experiência com a palavra força. “A lição de tudo o que aconteceu é de força. Não só para mim, mas para outras pessoas, que tiraram forças não sei por onde passar por essa dificuldade. e tentar, aos poucos, superar”, declara.
Raquel conta que passou o Natal com a família de uma forma diferente. “Foi um momento para a família se reunir e falar sobre o quanto ficaram gratos este ano, apesar do que passaram. Espero para 2025 que isso não aconteça novamente e que os prefeitos façam jus às suas palavras” , diz a gaúcha, que lembra a importância da solidariedade. “A enchente mostrou que, quer tivéssemos dinheiro ou não, todos seguiam o mesmo caminho”, acrescenta.
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