Nos últimos meses, o Brasil registrou uma série de assassinatos brutais motivados por simples gestos que, em algumas regiões, são interpretados como códigos de facções criminosas. Segundo dados da Secretaria Nacional de Políticas Penais (Senappen), esses grupos não apenas disputam territórios, mas também se apropriam de símbolos e gestos culturais, transformando-os em marcas de poder. A falta de conhecimento sobre estas associações tem colocado os jovens e até as crianças em situações extremamente perigosas. Os especialistas são unânimes em afirmar que a atuação das facções criminosas no país vem aumentando a cada ano e que a expansão de suas atividades ocorre, em parte, devido à insuficiência da atuação do Estado.
Os símbolos utilizados pelas facções criminosas no Brasil, como o “V” do Comando Vermelho (CV) e o gesto de três dedos associado ao Primeiro Comando da Capital (PCC), são marcas de poder e identidade dentro e fora dos territórios controlados. por essas organizações. O “V”, que simboliza a vitória, foi apropriado pelo CV para representar sua força e presença, enquanto o gesto dos três dedos é utilizado pelo PCC como forma de reconhecimento interno entre seus associados. Embora pareçam inofensivos, estes gestos carregam significados profundos em áreas dominadas por facções e, quando usados inadvertidamente, podem ser vistos como provocações, colocando vidas em risco. A disseminação destes símbolos ampliou os perigos.
Na sexta-feira, um homem de 40 anos foi morto na comunidade Catiri, em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Segundo testemunhas, ele foi confundido pelos traficantes com um miliciano porque usava roupas pretas.
Vidas perdidas
Nos últimos meses, vários casos chamaram a atenção para a violência gerada pelo simbolismo. Henrique Márquez de Jesus, de 16 anos, foi morto em Jericoacoara, no Ceará, após fazer um gesto com três dedos enquanto posava para uma foto. Ele era turista e visitou a região ao lado do pai. No Mato Grosso, Jonatan Roberto Garcia Parpinelli, 36 anos, foi assassinado em Diamantino por postar uma foto com o mesmo gesto. No Porto Esperidião, as irmãs Rayane e Rithiele Porto, de 25 e 28 anos, foram sequestradas e brutalmente assassinadas, também por terem postado fotos em suas redes sociais fazendo símbolos com as mãos. Na Bahia, Marcos Vinícius Alves Gonçalves, 20, também foi morto por causa de uma foto com gestos interpretados como ligados ao Comando Vermelho. Em Londrina, Gabriel Fernando dos Santos Lima, 17 anos, foi morto a tiros enquanto dormia em casa. O coroinha era catequista e fotógrafo da Paróquia São José, no bairro de Irerê. A Polícia Civil do Paraná investigou o caso e cogitou a possibilidade de o coroinha ter sido morto por engano.
Na Paraíba, o conflito entre as facções “Estados Unidos” e “Al-Qaeda” exemplifica como o simbolismo é utilizado como arma de controle. A facção “Al-Qaeda”, abrasileirada para “Okaida”, surgiu como oposição à hegemonia dos “Estados Unidos”. Nesse contexto, roupas com estampas da bandeira americana, estrelas e listras passaram a ser vistas como provocação em áreas controladas pela Al-Qaeda. Há alguns anos, cortes de cabelo com desenhos e linhas de sobrancelhas também foram apropriados pelas facções. Segundo as investigações, diversos crimes ocorreram em diferentes estados, envolvendo jovens que adotaram esses estilos sem conhecer as conotações. Em Fortaleza, Jefferson Brito Teixeira, de 14 anos, foi morto a tiros em 2020. O Ministério Público do Ceará concluiu que o adolescente foi assassinado por criminosos que acreditavam que os cortes em sua sobrancelha simbolizavam pertencer a uma facção criminosa.
O Correspondência entrevistou, com exclusividade, um jovem que tem contato com integrantes de uma facção e forneceu detalhes sobre a atuação violenta dessas organizações, que se apropriaram de diversos símbolos. Ele garantiu não ter envolvimento direto com nenhuma facção, mas afirmou conhecer pessoas ligadas a elas. “Não tenho envolvimento direto, mas crescemos em zonas onde as facções estão presentes e acabamos por saber como agem, o que fazem, os seus interesses e como se comportam”, declarou. Segundo ele, é comum na periferia ouvir expressões como “tudo 2”. “Esta expressão significa que todas as pessoas daquela região pertencem ao mesmo grupo”, explicou.
Simbologias
O professor Maurício Stegemann, especialista em Direito Penal e Criminologia pela Universidade de São Paulo (USP), destaca que a urbanização excludente das grandes cidades brasileiras é um dos fatores que contribuem para a territorialização dos espaços marginalizados. Segundo ele, essa dinâmica cria fronteiras que favorecem laços de solidariedade mecânica entre os moradores dessas áreas. “Esses laços são reforçados por símbolos específicos, utilizados como forma de identificação entre os membros de cada grupo ou facção”, explica Stegemann, ressaltando que os símbolos utilizados pelas facções não são apenas marcas de pertencimento, mas também ferramentas de diferenciação.
O sociólogo Marcelo Senise destaca que o uso de símbolos pelas facções criminosas é um fenômeno contemporâneo, mas com raízes históricas. “Os símbolos, antes vistos como comuns, se transformam em ferramentas de controle social. É como se o marketing legitimasse sua presença territorial e intimidasse quem não faz parte do grupo”, afirma o sociólogo.
O especialista destaca que a apropriação de gestos simples, como o “V de vitória” e outros sinais, também é uma estratégia midiática das facções. “Essas ações têm o objetivo claro de ganhar páginas de jornais, reafirmar a presença do grupo e demonstrar poder tanto para a sociedade quanto para facções rivais”, analisa.
Gabriel Ferreira, criminalista e mestre em Direitos Humanos, reforça que a apropriação de práticas culturais, como cortes de cabelo e mechas nas sobrancelhas, reflete o domínio simbólico das facções. “Hoje, qualquer escolha estética ou gestual pode ser perigosa dependendo da região onde você está”, afirma, destacando que esta apropriação cultural demonstra a ausência do Estado em áreas vulneráveis.
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A influência das redes
Luciana Salgado, consultora de marketing e novas tecnologias, destaca que a desinformação sobre os símbolos utilizados pelas facções criminosas torna a sociedade extremamente vulnerável. “A falta de conhecimento sobre a língua, os gestos e onde atuam as facções pode levar qualquer cidadão a pagar com a vida. Muita gente não percebe que esses códigos, impostos pela criminalidade, têm um peso significativo”, alerta. Esta falta de informação é particularmente grave num ambiente onde gestos, estilos e até palavras podem ser interpretados como desafios ou provocações.
O especialista chama ainda a atenção para o uso estratégico das redes sociais pelas facções criminosas. Segundo ela, plataformas como Facebook, Instagram e TikTok são utilizadas para atrair jovens e crianças, atraídos por uma vida de ostentação. A facilidade de acesso às redes sem a devida regulação é um fator que agrava esta situação. “A falta de controle adequado facilita o contato direto entre criminosos e jovens, transformando as redes sociais em terreno fértil para o aliciamento”, analisa.
Autoridades
A Secretaria de Segurança Pública de Mato Grosso (SSP-MT) informou, em nota, que o inquérito da Polícia Civil identificou 16 pessoas envolvidas nas mortes das irmãs Rayane e Rithiele Porto. “O inquérito policial, conduzido pela Delegacia de Porto Esperidião, foi concluído no dia 30 de setembro. Oito adultos foram indiciados por organização criminosa, extorsão mediante sequestro qualificado com morte, extorsão mediante sequestro qualificado com lesão grave, tortura e furto. a atos criminosos semelhantes aos crimes apontados na investigação. Seis investigados foram presos e apreendidos durante a operação ‘Circo’, e outros 10 foram detidos em flagrante no momento do crime”, diz o comunicado. observação.
O Correio também tentou contato com a Secretaria de Segurança Pública do Ceará por e-mail e telefone, mas esta optou por não comentar o assunto. As Defensorias Públicas dos estados de Mato Grosso e do Ceará também foram procuradas, mas não houve resposta.
Para os especialistas, existem falhas de Estado. Maurício Stegemann, especialista da Universidade de São Paulo (USP), critica a falta de políticas públicas eficazes para combater a desinformação em áreas dominadas por facções. “A falta de campanhas informativas e educativas torna as pessoas mais vulneráveis à violência simbólica, principalmente em regiões onde o controle territorial é exercido com rigor”, destaca.
Embora a violência simbólica tenha ganhado destaque, o sociólogo Marcelo Senise acredita que o fenômeno pode ser temporário. “Não vejo que isto prospere a longo prazo. Estas ações, embora brutais, são muitas vezes casos isolados que não podem ser sustentados. No entanto, enquanto persistem, causam um impacto devastador”, acrescenta.
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