A resposta da natureza ao avanço agroindustrial desenfreado colocou o estado do Rio Grande do Sul em xeque. Em poucos dias, após uma sequência de temporais, muitos municípios gaúchos ficaram submersos. O cenário de guerra em que os moradores tentam recuperar um mínimo de normalidade obriga à reflexão sobre como o ambiente urbano é construído. Modelos que levam em conta apenas a estética ou a necessidade de expansão habitacional não são mais aceitáveis na gestão do crescimento da cidade. Aspectos como a resiliência destes núcleos populacionais face à nova realidade climática são agora vistos com muito mais atenção.
No ano passado, o Brasil registrou um número recorde de desastres hidrológicos e geohidrológicos. Segundo o Centro Nacional de Desastres Nacionais (Cenaden), unidade de pesquisa vinculada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI), foram registrados 1.161 eventos de desastres somente em 2023.
Na perspectiva hidrológica, ocorreram 716 eventos decorrentes de transbordamentos de rios e 445 de origem geológica, como deslizamentos de terra. Os valores superam os registados em 2020 e 2022. Entre 2013 e 2022, as catástrofes naturais afetaram 5.199 municípios — 93% dos 5.570 distribuídos pelo país —, impactando mais de 4,2 milhões de habitantes, segundo o Conselho Nacional de Municípios da Confederação ( CNM).
Os efeitos dos temporais no Sul totalizam 461 municípios afetados, 92,7% do total. As fotos e vídeos dos locais atingidos pela força da água expõem os danos deixados.
Memórias
A tragédia no Rio Grande do Sul reforça a urgência do debate sobre o futuro das cidades em tempos de grandes mudanças climáticas que afetam todo o país. No Podcast do Correio, a bióloga Mercedes Bustamante lembra que qualquer deslocamento populacional devido a desastres naturais também impacta as histórias e memórias dos locais afetados.
“Quando é preciso deslocar pessoas, não significa simplesmente construir uma nova casa. É deslocar memórias e histórias que estão associadas a esse território”, afirmou.
Na madrugada desta sexta-feira, a auxiliar de serviços gerais Raquel Borba, de 25 anos, e sua família estavam atentos às condições climáticas, pois a região ainda sofria com fortes chuvas. Porém, não imaginavam que a água pudesse invadir a casa, em São Leopoldo (Região Metropolitana de Porto Alegre), algo que nunca havia acontecido. “Não tinha muita água na frente da minha casa, mas sempre tomamos cuidado. Só achávamos que a água não entraria na casa porque nunca tinha entrado”, lembra Raquel.
Em questão de horas, a água subiu com uma velocidade assustadora. “Foi muito rápido. De repente entrou água. Consegui pegar algumas coisas, minha mãe também, mas meus irmãos não aguentaram nada. Não conseguimos pensar, é tudo tão rápido, é tudo tão triste”, ele disse.
Sem outra opção, Raquel, a mãe e os irmãos procuraram refúgio na casa de uma cunhada. “Ficamos lá em cima. A água não tinha chegado lá”, disse ela. No entanto, a sensação de segurança durou pouco. Na madrugada de sábado, a situação piorou. “A água entrou lá embaixo. Um rio estourou, inundando tudo.”
O impacto foi devastador para os bairros Progresso e Sans Souci, onde Raquel morava. “Veio uma corrente, parecia um filme de terror. É horrível, muita gente assustada, gritando, outros querendo ajudar. “
Atualmente, Raquel está em Capão da Canoa, separada da família, com quem se comunica apenas por videochamadas. “Estou com saudades deles. Quero vê-los logo. Só quero que esse filme acabe.”
Desastre anunciado
A tragédia gaúcha não é um acontecimento isolado, na opinião de especialistas de diversas áreas. Para Nicolás Sica Palermo, professor de arquitetura da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), os fatores urbanos contribuíram para o desastre. “Em nível nacional, episódios recentes de desmatamento e urbanização acelerada (regular e irregular, planejada e não planejada) certamente contribuíram muito e precipitaram o fenômeno. No estado do Rio Grande do Sul (especialmente na capital, Porto Alegre), a falta de novas obras e a precária manutenção dos atuais dispositivos de prevenção de enchentes urbanas acabaram gerando essa catástrofe de grandes proporções”, finaliza.
A ocupação de locais de risco por falta de moradia digna impactou diretamente na extensão dos danos. “Encostas, áreas inundáveis próximas a rios e lagos e áreas permeáveis essenciais para absorção e escoamento de água acabam sendo ocupadas, não permitindo que desempenhem seu papel fundamental durante ciclos de enchentes e chuvas extremas. observado aqui no Rio Grande do Sul”, explicou.
“Talvez o aspecto mais importante seja detectar quais são as áreas críticas de risco nas quais as pessoas estão instaladas e depois propor a sua realocação para áreas seguras”, acrescentou Palermo.
Geologia
Na análise do geólogo e professor da UFRGS Antônio Pedro Viero, o cenário atual influencia diretamente o processo de reconstrução das cidades e a necessária relocalização de bairros e comunidades. “Não podem estar em zona de risco de inundação, em zonas baixas, próximas das margens dos rios, e também não podem estar localizados em zonas elevadas, dado o risco de deslizamentos de terras em encostas”, notou o geólogo.
O mapeamento geológico e hidrológico no planejamento da reconstrução do Estado é, para o especialista, um ponto-chave do processo. “Nas cidades onde necessariamente haverá reconstrução porque a destruição foi tão grande, esses locais não deverão voltar a ser ocupados”, alertou.
Para o arquiteto, urbanista, professor da Universidade de Passo Fundo e membro do Conselho Estadual de Arquitetura e Urbanismo (CAU-RS) Marcos Antonio Frandoloso, o tema deve ser pensado de forma mais sustentável e consciente, não apenas como um resposta à catástrofe recente, mas como orientação para o futuro.
“O futuro precisa ser repensado drasticamente. O problema é que temos um viés econômico, que tem sido usado contra o meio ambiente. Nessas áreas de ocupação urbana as cidades são construídas de forma espontânea, mas não podemos mais pensar em cidade sem planejamento “, disse o arquiteto. Ele enfatiza que o desenvolvimento urbano deve ser conduzido com consciência ambiental para evitar tragédias futuras.
“Acredito muito em soluções pensadas a partir de retardar a chegada das águas pluviais e dos rios. Esses locais não podem ser ocupados novamente com moradias, indústrias, comércios e serviços que ficam bem em cima das áreas de preservação permanente. já foram devastados”, disse ele.
Uma das soluções práticas sugeridas é a implementação das chamadas “cidades esponja”. Este conceito envolve a criação de espaços urbanos que permitam a permeabilização do solo, reduzindo o impacto do asfalto e outras superfícies impermeáveis que aceleram o escoamento das águas pluviais. As cidades-esponja utilizam uma série de estratégias para reter e reter a água, ajudando a mitigar os riscos de inundações.
“As cidades esponja trazem uma série de estratégias para reter a água e desacelerar (o fluxo). Precisamos fazer um processo de mitigação desses efeitos e de adaptação da cidade”, finalizou o professor.
*Estagiários sob supervisão de Vinicius Doria
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