Privilegiado em recursos hídricos, o Brasil não cuida bem da água que capta, trata e distribui à população. Num país com mais de 32 milhões de habitantes sem beber líquido na torneira, os resíduos correspondem a cerca de 35% de todo o volume produzido pelas empresas de saneamento, percentagem muito superior à média dos países desenvolvidos, que ronda os 15%. Essas perdas, se evitadas, poderiam abastecer cerca de 54 milhões de pessoas, mais de um quarto da população brasileira.
Os dados são do Instituto Trata Brasil, organização não governamental que defende a universalização dos serviços de saneamento. Segundo a ONG, dado o cenário global de mudanças climáticas — o desastre das enchentes no Rio Grande do Sul é um exemplo dramático —, o combate ao desperdício implicará “a disponibilidade de mais água sem a necessidade de coletá-la em novas fontes”. O estudo, baseado em dados públicos do Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), constata que as perdas representam, de longe, o principal desafio do setor.
Como meta aceitável, o Ministério do Desenvolvimento Regional indica que, para um município ter excelentes níveis de perdas, estas devem ser no máximo 25%. A conta inclui vazamentos, erros de medição e consumo não autorizado. As perdas afetam não apenas os custos de produção, mas também o próprio abastecimento de água. Quanto maior o desperdício, mais água precisa ser captada e tratada, num volume de produção muito superior ao efetivamente demandado.
Para o Trata Brasil, esses desequilíbrios impactam o custo do tratamento de água, sobrecarregam as fontes de abastecimento de água (com captação acima da real necessidade) e aumentam os custos de mitigação dos impactos ambientais causados pelas atividades de saneamento. O estudo aponta, por exemplo, aumento na necessidade de utilização de produtos químicos e energia elétrica para bombeamento, mais gastos com manutenção de redes e equipamentos e maior custo para captação de água de fontes alternativas, de menor qualidade ou de difícil acesso.
Desigualdade
Entre 2021 e 2022, registou-se uma ligeira redução do Índice de Perdas na Distribuição, de 40,25% para 37,78%, respetivamente, após uma longa série ascendente. Mesmo assim, está longe da meta de 25%, o que revela a dificuldade de combate ao desperdício de água potável. Mas há bons exemplos em todo o país, como em Cariacica e Vila Velha, na Região Metropolitana de Vitória. O primeiro conseguiu reduzir as perdas de 60,1%, em 2018, para 25%, em 2022. Em Vila Velha, os resíduos caíram, no período, de 38,1% para 25,5%.
Entre os 100 maiores municípios brasileiros, a parcela de água tratada que não chega a quem precisa, 35%, está abaixo da média brasileira, mas apenas nove cumpriram todas as metas estabelecidas pelo Ministério do Desenvolvimento Regional para caracterizar um serviço de excelência: Goiânia , Campo Grande, Limeira (SP), Petrópolis (RJ), Campinas (SP), Maringá (PR), Suzano (SP), São José do Rio Preto (SP) e Caruaru (PE).
Na última posição do ranking estão 20 municípios com perda equivalente a mais da metade do oferecido, o que é considerado pelos especialistas do Trata Brasil como um cenário de “níveis alarmantes”. Porto Velho é o que menos entrega água potável à população em relação ao abastecimento: de cada 100 litros produzidos, 77 são jogados fora, mas é o consumidor quem paga esse desperdício na conta da concessionária. Em seguida estão Ribeirão das Neves (MG), Cuiabá, Recife e Rio de Janeiro.
Por regiões, o Norte e o Nordeste são os que registram mais perdas na distribuição, com 46,9% e 46,6%, respectivamente. Sudeste (33,9%), Centro-Oeste (35%) e Sul (36,6%) ficaram abaixo da média brasileira: nos três, nove em cada 10 habitantes têm acesso à água potável, serviço que atende apenas 64% dos nordestinos e 76% dos nortistas. Na avaliação do instituto, esses percentuais estão estáveis, o que não é uma boa notícia. “A tendência é de estagnação, com poucas exceções”, diz o estudo, que regista o esforço da Região Norte para reduzir esta perda: face a 2021, a taxa de perdas caiu cinco pontos percentuais.
Por Unidades da Federação, o menor índice de resíduos na distribuição, em 2022, foi o de Goiás, com 28,3%, seguido por Rio de Janeiro (32%), Mato Grosso (33,2%), Distrito Federal (33,8%) e São Paulo (34,1%).
Ganhos econômicos
O estudo Trata Brasil também calculou, com base em três cenários, os possíveis ganhos econômicos que uma política de redução de perdas poderia gerar. Num cenário otimista, seria possível reduzir as perdas de água potável para 15% em 11 anos, gerando um ganho bruto correspondente a R$ 72 bilhões. O cenário realista prevê perdas de 25%, com ganho bruto de R$ 40 bilhões. Se nada diferente for feito, porém, as perdas não deverão cair abaixo de 35% até 2034, gerando ganhos de cerca de R$ 4,4 bilhões.
Os investigadores concluem que “a lentidão do progresso indica grande dificuldade” para o país atingir uma das principais metas do novo Marco Legal do Saneamento Básico, que é fornecer água potável a 99% da população até 2033. “É fundamental combater as perdas de água para que, por meio de sistemas de distribuição eficientes, seja garantido o pleno acesso a esse recurso vital a todos os brasileiros”, aponta o relatório.
Outro alerta são as consequências das alterações climáticas, que exigem ações de mitigação de danos que incluem a proteção dos recursos hídricos. As enchentes no Rio Grande do Sul, por exemplo, foram causadas por um grande volume de água não potável. Milhares de gaúchos ainda não têm água para beber porque as redes de distribuição e muitas estações de tratamento foram danificadas ou destruídas pelas enchentes.
“A combinação de infraestrutura inadequada e uma frequência cada vez maior de eventos climáticos extremos permite que situações como a do Rio Grande do Sul se repitam, resultando em perdas incalculáveis. Portanto, se há uma lição a ser aprendida com essa situação, a importância de ações concretas e imediatas, visando garantir a segurança hídrica e cumprir as metas da Portaria 490/2021 para prevenir futuras tragédias”, comentou Gesner Oliveira, professor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getulio Vargas (Eaesp-FGV).
Soluções envolvem investimento, gestão e tecnologia
O problema do desperdício de água tratada no Brasil está inserido em uma discussão mais ampla, que é o subfinanciamento histórico do setor de saneamento básico no país. Para o ministro das Cidades, Jader Filho, é preciso incorporar a cultura da prevenção ao orçamento público e destinar mais recursos para melhorar os sistemas de tratamento e redes de distribuição de água potável.
O chefe do ministério lembrou que o setor está inserido no Novo Programa de Aceleração do Crescimento (Novo PAC). “A política pública tem que ser um investimento, por isso o PAC aborda questões específicas de saneamento, tratamento de água, drenagem, coleta e tratamento de esgoto e resíduos sólidos”, afirmou.
Jader Filho defendeu que a prevenção de resíduos deveria constar no Orçamento. “Se quisermos realmente mudar a realidade do saneamento, isso tem que estar incluído no Orçamento brasileiro, no governo federal, nos estados e nas prefeituras. O que não podemos é ficar cinco, 10 anos sem ver isso priorizado. Precisamos sair da discussão e passar à prática, fazer investimentos, localizar as famílias que precisam de água, que precisam de esgoto, é onde o recurso tem que chegar”, disse ao Correio.
Para a presidente executiva do Instituto Trata Brasil, Luana Pretto, o diagnóstico do ministro está correto: faltam investimentos para que o país consiga, pelo menos, cumprir as metas de universalização do abastecimento de água e da coleta e tratamento de esgoto e, principalmente , minimizando problemas crônicos como o desperdício de água potável. Ela cita como exemplo o investimento por habitante no setor de saneamento, de R$ 111 por ano, quando deveria ser mais que o dobro, R$ 231 por habitante/ano.
“Esse investimento geralmente é dividido em três grandes frentes: ampliação do acesso à água, ampliação do acesso à coleta e tratamento de esgoto e redução das perdas de água. Quando falamos em perda de água, se não fizermos nada, esses números certamente vão piorar. as perdas já são muito baixas”, disse Luana Pretto ao repórter.
Um dos entraves destacados pelo especialista é a crença que os brasileiros têm de que não faltará água no Brasil, de que o recurso natural é infinito. Como os programas de redução de perdas de água tratada exigem trabalho e são relativamente caros, o presidente do Trata Brasil diz que é comum ver gestores públicos investindo em mais estações de tratamento em vez de priorizar o combate ao desperdício.
“Reduzir as perdas é um processo complexo, é muito mais fácil construir uma estação de tratamento para colocar mais água no sistema de distribuição. mais igual, fica mais complexo pensar em novas captações, fica mais difícil obter licenciamento ambiental, as concessões são mais caras, as concessionárias precisam pensar na eficiência do sistema de distribuição de água”, recomenda o especialista.
A tragédia das enchentes no Rio Grande do Sul é um ponto de inflexão nesse debate. A reconstrução das cidades afectadas exigirá sistemas de distribuição de água mais inteligentes e eficientes. Mas este é um problema que afecta todo o país, de Sul a Norte. Luana Pretto cita a situação da Amazônia, rica em água, mas que viveu uma grave crise hídrica no ano passado. Por outro lado, existem muitas iniciativas promissoras espalhadas pelo país que mostram que é possível estabelecer políticas eficientes na área de saneamento.
Goiânia e Campo Grande são as únicas capitais que conseguiram atingir a meta de redução de perdas para 25%, mas há cidades como Campinas (SP) e Cariacica (ES) que também reduziram consideravelmente o desperdício. No caso da cidade capixaba, a redução foi de 34% em apenas cinco anos. Portanto, é necessário que a população exija dos seus gestores públicos ações efetivas na área de saneamento, setor que não deve ser minimizado no debate que ocorre neste ano de eleições municipais.
“É importante que a população apoie seus candidatos. Combater esses problemas não é difícil, mas precisa de gestão, tecnologia e investimento constante”, aponta o presidente do Trata Brasil. “Se olharmos para os últimos 10 anos, não avançamos na redução de perdas. Pelo contrário, pioramos. Mas o mundo mudou na última década. Investir e priorizar a questão da redução de água perdas trazem ganhos econômicos, sociais e ambientais para o país. E não temos mais tempo para esperar”, finalizou Pretto.
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